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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Carta de Martinho Lutero a George Spalatino [1521]

A Spalatino. 14 de Maio de 1521[1]

Ao seu caríssimo e fidelíssimo servo em Cristo, George Spalatino, em Altenburg.

Jesus. Saudações. Recebi a sua carta, assim como as de Gerbel e Sapido, na domínica Exaudi, querido Spalatino. Atrasei deliberadamente a contestação para que o ruído recente de meu cativeiro não desse motivo para que alguém interceptasse as cartas. Por aqui correm muitos rumores sobre mim; não obstante, prevalece a opinião de que fui capturado por amigos enviados da Franconia. Amanhã expira o prazo do salvo-conduto imperial.[2] Causa-me dor o que me disse do rigorosíssimo edito que dará motivo para violentar até as consciências[3]; e não é algo que dói por mim, mas porque sua imprudência acabará arrojando todo o mal sobre suas cabeças e porque estão incitando cada vez mais ódio. Quanto ódio suscitará está vergonhosa violência! Mas deixe-o; possivelmente esteja chegando o tempo de sua visitação.[4]

Continuo sem notícias acerca dos nossos de Wittenberg e dos demais lugares. Enquanto íamos a Eisenach a juventude de Erfurt assaltou durante a noite as casas de alguns sacerdotes; estava indignado porque o decano de são Severino, grande papista, agarrando-os pela gola das vestes, expulsou publicamente do coro o mestre Drach, sob o pretexto de que estava excomungado, pela simples razão de que, junto conosco, saiu para me receber quando cheguei a Erfurt. Entretanto, aguardam que outras coisas aconteçam. O conselho anda dissimulando; os sacerdotes não tendo boa reputação ali, e dizem que a juventude artesã anda conspirando com os estudantes. Possivelmente está próximo o cumprimento do provérbio “Erfordia Praga”.[5]

Contaram-me ontem que em Gotha, certo sacerdote foi mal recebido porque havia comprado não sei o que para incrementar os ingressos da igreja e, com a desculpa de isenção eclesiástica, negou-se pagar os impostos e tributos. Podemos perceber que o povo não pode nem quer continuar aguentando o jugo papista, como disse Erasmo em sua Boulé.[6] Não cessamos de urgi-lo e dar-lhe importância, porque, graças a luz reveladora de tudo, temos prescindido da fama, da opinião, e aquele tipo de piedade não vale, nem reina, como não reinou até agora. Veremos se de agora em diante, oprimindo e aumentando tudo como até este momento fizeram.

Da minha parte aqui estou todos os dias sentado, ocioso e crapuloso. Estou lendo a Bíblia em hebraico e grego. Vou escrever um sermão em alemão sobre a liberdade da confissão auricular, continuarei com os Salmos e os comentários, desde que receba de Wittenberg algumas coisas necessárias, entre as quais se encontra o Magnificat que comecei.

Você não faz ideia da amabilidade com o que o abade de Hersfeld nos acolheu.[7] Ele fez com que o seu chanceler e seu tesoureiro saíssem ao nosso encontro a uma légua de larga distância; depois, o mesmo com muitos cavaleiros nos recebeu à entrada de seu castelo e nos acompanhou até a cidade. Nela fomos recebidos pelo conselho. Descansamos em seu monastério e me alojou em seu próprio quarto. Obrigaram-me a pregar um sermão às cinco da manhã, apesar de que lhes adverti que se expunham a perder os seus benefícios, se a notícia chegasse aos imperiais, que o interpretariam como uma violação da promessa dada ao mandato de não pregar em meu itinerário. Entretanto, disse-lhes que não havia consentido em que se atasse a Palavra de Deus, como era a verdade. Também preguei em Eisenach apesar do protesto do acovardado pároco ante o notário e testemunhas presentes, alegando com humildade de ser necessário a isto, por medo de seus tiranos. Talvez em Worms digam que com isto violei a promessa, mas não foi assim, porque não dependia de minha condição de atar a Palavra de Deus, nem prometi isto; e ainda, de ir contra Deus, e muito menos poderia observá-lo ainda que houvesse prometido. Ao dia seguinte nos acompanhou até a selva e havendo o seu chanceler se unido a nós, nos ofereceu comida a todos em Berka. Por fim, e depois de partir todo este acompanhamento com Jerônimo, entramos pela tarde em Eisenach e fomos recebidos pelos cidadãos do local que a pé, saíram ao nosso encontro.

Através da selva fui visitar aos meus parentes que estão espalhados por quase toda a região. Despedi-me deles, e quando nos dirigíamos a Walterhausen, um pouco além das proximidades de Altenstein, fui capturado. Amsdorf[8] estava forçosamente informado de que alguém planejava sequestrar-me, mas ignora o lugar de meu cativeiro. O irmão que ia comigo[9] ao perceber a tempo os cavaleiros, saltou do carro e dizem que chegou a pé, pela tarde, em Walterhausen, sem que ninguém lhe saudasse.

Aqui em encontro, despojado de meu hábito, disfarçado de cavaleiro, com barba e cabelos longos. Seria difícil para você me reconhecer, porque há muito tempo que nem eu mesmo me conheço. Atuo com liberdade cristã, livre de todas as leis desse tirano, se bem que é verdade que eu gostaria que o porco de Dresden[10] se dignasse em matar-me por pregar em público, se é que Deus lhe agrada que padeça por sua Palavra.

Adeus e rogue por mim. Saudações a toda a tua corte.

No Monte, terça-feira da domínica Exaudi, 1521.
Martinus Luterus.


NOTAS:
[1] WA Br 2, pp. 337-338. Incluímos esta carta por expressar e recompor o retorno de Lutero de Worms e os sentimentos que o animam em seu retiro forçado em Wartburg, onde disfarçado passaria 300 dias e conhecido pelo “cavaleiro George”.
[2] Refere-se ao salvo-conduto expedido por Carlos V, no dia 25 de Abril e válido por 21 dias.
[3] O edito imperial de proscrição com todos os efeitos conseguintes (qualquer um poderia atentar com toda tranquilidade contra a vida do proscrito), estava redigido, ainda que tardaria algo em promulgar-se. Este é o motivo de que toda a vida posterior de Lutero transcorra na Saxônia.
[4] Jr 46:21.
[5] Reproduz um provérbio popular que fazia referência aos sucessos que em 1409 registra-se ocorrem na cidade de Praga. O rei da Bohemia reformou o estudo e concedeu a independência a “nação” Tcheca, em prejuízo da Alemanha, que era quem a dominava naqueles dias de Huss. Os alemães, em parte, recorreram a Erfurt, primeira universidade de Lutero.
[6] Consilium cuiusdam exa animo cupientis que apareceu entre 1520-1521, que literalmente diz citado por Lutero, e que certamente não era de paternidade erasmiana.
[7] Era abade do monastério de Hersfeld naquelas circunstâncias Kraft Myle.
[8] Nicolas de Amsdorf (1483-1565), professor de Wittenberg, companheiro de Lutero e um de seus mais próximos amigos e colaboradores. Se tornaria no representante da ortodoxia luterana contra os “desvios” irenistas e sinergistas de Melanchthon e do “luteranismo”. Consagrado bispo de Naumburg por Lutero (1542). Cf. P. Brunner, Nikolaus von Amsdorf als Bischof von Naumburg, Gütersloh 1961.
[9] O irmãos agostiniano J. Petzensteiner, companheiro com Amsdorf deste velhor regresso de Worms e testemunha do sequestro simulado. Cf. M. Simon, Johannes Petzensteiner, Luthers Reisebegleiter in Worms: Zeitschrift für bayerische Kirchengeschichte 35 (1966), pp. 113-137.
[10] O duque George da Saxônia.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp.383-385.
Tradução com introdução e notas em 12 de Abril de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

sábado, 31 de maio de 2014

Carta de Martinho Lutero a Johannes Staupitz [1521]

A Staupitz. 14 de Janeiro de 1521[1]

Jesus. Saudações. Quando estávamos em Augsburg[2], reverendíssimo pai, ao tratar deste meu assunto, e entre outras coisas, me disse: “não esqueça, irmão, que tudo você começou em nome de nosso Senhor Jesus Cristo.” Estas palavras as recebi não como faladas por você, mas proferidas por meio da sua pessoa, e as tenho gravadas em minha memória. Com estas mesmas palavras, suplico: “acorde também do que você me disse”. Este negócio se tornou num jogo até agora; ao presente a coisa está se tornando mais sério e, ao tom de suas palavras, se Deus não o completar, é impossível que chegue ao seu término. Ninguém pode colocar em dúvida que tudo se acha na mão do poderosíssimo Deus. Que de nós pode decidir aqui? O que pensarão os homens? É tão violento o tumulto que se levanta, que me parece não será possível aplacar até o dia final, que tanta é a animosidade a que de um lado, ou de outro chegou.

Ainda que emita excomunhões, queime livros e me mate, é fato, que o papado não se encontra na mesma situação que antes. Todos os sinais dizem que um grande portento está clamando às portas. Que afortunado seria o papa se empenhasse em compor a paz com bons meios, em vez de afrontar a questão tratando de eliminar a Lutero pelo redemoinho da violência! Queimei os livros e a bula papal[3], no princípio o fiz com medo e rezando, mas hoje estou contente de ter realizado, pelo que teria feito durante minha vida. São mais peçonhentos do que eu acreditava serem.

Emser, de Leipzig, escreveu em língua vernácula, motivado pelo duque George[4], que está furioso comigo, e que “respirando ameaças e morte”,[5] dispôs na mesma aula de forma impiedosa que tomassem medidas contra mim.

O imperador me convocou por carta dirigida ao príncipe. Ao recusar este, revogou aquele a primeira carta com outras. Somente Deus sabe o que sucederá[6].

O nosso vigário Wenceslao marchou para Nürnberg. Zschessius se encontra em Grimma e disse que partirá dali; Deus o conserve.[7]

Aqui tudo está florescendo como antes. Hutten apostilou a bula[8] com anotações saladísimas contra o papa e está preparando outras coisas sobre o mesmo. Os meus escritos foram queimados três vezes: em Lovaina, em Colônia e na Maguncia com grande desprezo e perigo dos que os queimaram. Até Tomás Murner[9] furioso escreveu contra mim. Esse asno descalço de Leipzig não me incomoda.[10]

Adeus, meu pai. Rogue pela palavra de Deus e por mim. Estou arrebatado e envolto nestas olas.

Wittenberg, dia de são Felix, 1521.
Martinus Lutherus, agostiniano.


NOTAS:
[1] WA Br 2, pp. 245-246.
[2] Na entrevista com Cajetano em Outubro de 1518 (cf. Conversas a Mesa).
[3] A queima pública e teatral da bula condenatória de sua doutrina (Exsurge Domine, de Leão X), assim como dos livros que representavam o direito e as tradições eclesiásticas e escolásticas ocorreu em 10 de Dezembro de 1520. (Os panfletos que distribuiu impressos, cf. em WA 6, pp. 597ss; 7, pp. 94ss. Uma narrativa vivida, por uma testemunha presente, em WA 7, pp. 184ss). H. Grisar, Zu Luthers Verbrennung der Bannbulle: Historisches Jahrbuch 42 (1922), pp. 266-276; J. Luther, Noch einmal Luthers Worte bei der Verbrennung der Bannbulle: Archiv für Reformationsgeschichte 45 (1954), pp. 260-265.
[4] A obra de referência escrita por Jerônimo Emser contra o Manifesto à nobreza. George da Saxônia será um inimigo próximo e perseguidor de Lutero, e sua universidade de Leipzig das mais hostis contra o reformador.
[5] Compare com At 9:1.
[6] Em relação com a Dieta de Worms, cf. a nossa introdução ao escrito 6 desta edição.
[7] Wenceslao Link, sucessor de Staupitz no cargo de superior de Lutero em 1520, três anos depois que aderiu a Reforma, na qual ele foi um elemento ativo. Wolgang Zeschau, abade do convento agostiniano de Grimma, também partidário de Lutero.
[8] Ulrich von Hutten (1488-1523), é um dos personagens mais caracterizados deste momento alemão. Apoiou a causa de Lutero por motivos políticos (nacionalistas), econômicos (talvez, também pelos religiosos), sendo que era um dos representantes dos cavaleiros prejudicados pela conjectura do novo capitalismo. Moveu – como bom humanista – bem os ressortes xenófobos contra Roma. Ademais de outros modos, lançou o panfleto de referência Bulla Decimi Leonis contra errores Martini Lutheri et sequatium. Sobre sua pessoa, atividade, etc., cf. a obra clássica de P. Kalkoff, Ulrich von Hutten und die Entscheidungsjahre der Reformation, Leipzig 1920, e a mais atual de K. Kleinschmidt, Ulrich von Hutten, Berlim 1955.
[9] Tomás Murner (1475-1537) um dos escritores satíricos antiluteranos de maior altura e genialidade. Entre outros escritos neste ano crítico a que Lutero alude, lançaria o que mais lhe deu fama, e o mais violento, em tom de epopeia Sobre os loucos luteranos (1522).
[10] Refere-se a Alfeld.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp.. 380-381.
Tradução com introdução em 31 de Maio de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

terça-feira, 25 de março de 2014

Carta Martinho Lutero a Johannes Staupitz [1518]

31 de Março de 1518[1]


A seu pai e superior em Cristo.

Jesus. Meu pai no Senhor: ao andar ocupado em tantas coisas me vejo forçado a comunicar-lhe pouquíssimas outras. Em primeiro lugar, creio que meu nome fede para muitos. Há algum tempo muitas pessoas boas atribuem-me condenar os rosários, coroas, ofícios fúnebres, e outras orações e até qualquer boa obra. O mesmo ocorreu a são Paulo, a quem imputavam ter declarado “façamos o mal para que o bem aconteça”.[2] O que ensino, continua sendo a teologia de Tauler e do livreto de Christian Aurifaber que você mesmo editaste, é que os homens depositem a sua confiança, não em orações, nem em méritos, nem nas próprias obras, mas, somente em Jesus Cristo, porque não nos salvaremos por correr, mas pela misericórdia de Deus.[3] Desta minha preocupação, eles tiram veneno que, como você pode ver, andam espalhando. Mas o mesmo que não comecei, tão pouco retrocederei em meu empenho movido pela fama ou pela infâmia. Deus haver de julgar.

Esses mesmos doutores escolásticos atiçam o ódio contra mim, tanto em força como em fervor, de seu zelo e estão a ponto de enlouquecer, pela simples razão de que antes que a eles, eu prefiro aos escritores escolásticos e a Bíblia. E é que leio aos escolásticos com discrição, não com olhos fechados (como é seu costume), sendo que o apóstolo preceituou “provai tudo, e retende o que é bom”.[4] Não os rejeito em tudo, nem tão pouco, os aprovo em tudo. Estes tagarelas costumam tomar a parte pelo todo, a converter a faísca em incêndio, e a mosca em elefante. Graças a Deus não me causam preocupação, nem mesmo os menores destes fantasmas. É puro palavreado e não passarão disso. Se foi permitido a Scotus, Gabriel e a outros semelhantes discordar de são Tomás, e se aos tomistas não lhes está vedado contradizer a tudo o que se ponha adiante, nem que entre eles existam tantas divisões como cabeças, ou inclusive como crinas de cada cabeça, por quê não me concederiam o meu esgrimir contra eles o mesmo direito que arrogam contra si? Se Deus agir, ninguém poderá impedi-lo, ninguém poderá levantá-lo se está descansando.

Adeus e rogue por mim, e pela verdade divina onde quer a encontre.

Wittenberg, 31 de Março de 1518. Fr. M. Eleutherius, agostiniano.


NOTAS:
[1] WA Br 1, 160. Johannes de Staupitz (falecido em 1524), vicário geral de Lutero agostiniano, é um personagem presente desde os seus primeiros anos na religião, como representante da bondade compreensiva. Lutero sempre lhe foi agradecido, mas não conseguiu envolve-lo na Reforma. Ver cartas seguintes e, em especial, a que Lutero lhe escreveu em 17 de Setembro de 1523. Cf. D.C. Steinmetz, Misericordia Dei. The Theology os Johannes Staupiz, Leiden 1968.
[2] Rm 3:8.
[3] Rm 9:16.
[4] 1 Ts 5:21.


Traduzido de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 376-377.

Tradução em 22 de Fevereiro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Carta de Martinho Lutero a Johannes Staupitz [1521]

Ao reverendo e excelentíssimo Johannes Staupitz, mestre na sagrada teologia, agostiniano ermitão, seu primogênito no Senhor.[1]

Saudações.

Admira-me que as minhas cartas e meus livros não tenham chegado ainda às tuas mãos, como deduzo de ti. Pregando aos demais, estou desqualificando a mim mesmo,[2] que até tal extremo me aliena o trato com os humanos. Porque te adjunto poderás ter uma ideia do espírito com que trato a Palavra de Deus. Nada se fez ainda em Worms contra mim, considerando que os papistas andam maquinando desígnios perniciosos com invejável furor. Spalatino escreveu-me dizendo que o evangelho goza ali de grande aceitação, que espera que não me condenem sem antes escutarem e serem convencidos.

Em Leipzig, sem nenhum tipo de inibição, Emser escreveu contra mim acusações que são coletâneas de mentiras desde o princípio até o fim. Percebo que preciso dar uma resposta a este monstruoso projeto do duque George, que é quem nutre a loucura do autor.[3]

Não me incomoda a notícia de que Leão X[4] também se voltou contra ti. Desta sorte, poderás erigir para exemplo do mundo a cruz que tanto pregaste. Não gostaria que o lobo se contentasse com tua resposta na que lhe concedes mais do que é justo; o interpretará como se renegasses de mim e de tudo o que é meu, ao declarar que te vem a submeter a seu juízo. Por isso, se Cristo te ama, te obrigará a reconvocação deste escrito, sendo que nessa bula se condenou tudo o que ensinas e aprazes. Como nada disto te és desconhecido, parece-me que ofendes a Cristo, pois aceitas como juiz aquele que é um furioso inimigo de Cristo, a quem se desenfreia contra a palavra da graça. Terias que afirmar isto, e repreendê-lo por esta impiedade. Que não é motivo para andar com medo, senão que deves responder, neste tempo em que nosso Senhor Jesus Cristo se vê condenado, despojado e blasfemado. Na mesma medida em que me exortas à humildade, eu exorto a tua soberba; tua humildade é tão excessiva, como excessiva é minha soberba.

Mas, a situação é séria. Vemos que Cristo está sofrendo. Se antes foi preciso calar, agora, quando o próprio boníssimo Salvador que se entregou a si mesmo por nós, padecendo ignomínia por todo o mundo, não lutaremos por ele, não ariscaremos o nosso pescoço? Meu pai, que é muito mais grave o perigo do que muitos pensam; começa a entrar no vigor do evangelho: “o que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu pai, mas me envergonharei do que de mim se envergonhar.”[5]

Que pensem que eu seja soberbo, avarento, adúltero, homicida, contra o Papa e réu de todos os vícios, com tanto que não podem arguir de calar impiamente enquanto o Senhor sofre e diz: “não há escapatória para mim; não há quem cuide de meu espírito; olhava a minha direita e ninguém me reconhecia.”[6] Tenho a confiança de que esta confissão me perdoará todos os meus pecados. Que por este motivo lancei confiado contra esse ídolo e verdadeiro anticristo de Roma. A palavra de Cristo não é palavra de paz, senão que palavra de espada.[7] Entretanto, o que direi, “miserável eu sou, Minerva?”.[8]

Estas coisas escrevo a ti, em confiança, porque muito temo que te coloques como mediador entre Cristo e o Papa, e que vejas o quão violentamente contrário eles são entre si. Roguemos para que o Senhor Jesus com o sopro de sua boca destrua sem tardar a este filho da perdição.[9] Se não queres vir após mim, deixe que eu marche e me retire. Não deixarei, pela graça de Deus, a tarefa de jogar na cara as atrocidades deste monstro.

De fato, que me enche de tristeza esta tua submissão, que me revela a um Staupitz tão diferente daquele pregador da graça e da cruz. Não teria sofrido se tivesses atuado desta forma antes da promulgação da bula e da ignomínia feita a Cristo.

Hutten e muitos outros escrevem com força a meu favor e estão preparando canções que farão pouca graça a esta Babilônia.[10] Nosso príncipe atua com tanta prudência e fidelidade como com constância. Por seu mandato o edito dessas declarações foram publicadas en latim e alemão.[11]

Saúda-te Felipe[12] e roga para que cresça o teu ânimo. Por favor, dê saudações ao médico Ludovico[13] que me escreveu com tanto conhecimento. Não tive tempo para responder-lhe, pois tenho só trabalhando para mim. Adeus no Senhor e ore por mim.

Wittenberg, Dia de santa Apolônia, 1521.[14]

Teu filho Martinus Lutherus.


NOTAS:
[1] Johannes Staupitz foi o tutor de Lutero e quem incentivou o futuro reformador aos estudos. Nesta carta Lutero reclama do silêncio de seu antigo mestre, em não comentar os livros que havia lhe enviado, nem se posicionar em relação ao movimento de reforma e das bula papal emitida. Nota do tradutor.
[2] 1 Co 9:27. Nota de Teófanes Egido.
[3] Veja a carta 6, nota 4. Nota de Teófanes Egido.
[4] Leão X, por meio do Arcebispo Matthew Lang de Salzburg, exigiu a Staupitz que declarasse como heréticas as doutrinas de seu súdito, Frei Martinho Lutero. Nota de Teófanes Egido.
[5] Mt 10:32; Lv 9:26. Nota de Teófanes Egido.
[6] Sl 142:5. Nota de Teófanes Egido.
[7] Mt 10:34. Nota de Teófanes Egido.
[8] Ditado por Erasmo, Adagia I, 1, 40. Nota de Teófanes Egido.
[9] 2 Ts 2:3 e 8. Nota de Teófanes Egido.
[10] É interessante observar a influência da opinião pública nesta fase da Reforma (ver carta 6, nota 8).
[11] Assertio omnium articulorum M. Lutheri per bullam Leonis X novissimam, damnatorum: WA 7, 94-151.
[12] Felipe Melanchthon (ver carta 9, nota 1). Nota de Teófanes Egido.
[13] Equivocadamente chama de Ludovico, o médico do arcebispo de Salzburg, cujo verdadeiro nome era Leonard Schmaus. Nota de Teófanes Egido.
[14] Data equivale a 9 de Fevereiro de 1521. Nota do tradutor.


Esta carta foi originalmente traduzida para o espanhol da versão revisada à luz dos dados da edição crítica de Weimar (Briefwechsel 1930 1970, WA Br 2, 263-264), em 14 volumes. Traduzido de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 381-383.

Tradução com introdução e notas em 13 de Fevereiro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Os Artigos com as 67 Conclusões de Hulrich Zwingli [1523]


Os artigos[1]
Eu, Hulrich Zwingli,[2] confesso ter pregado[3] na nobilíssima cidade de Zurique os artigos e conclusões que passarei a expor. Encontram-se baseados na Sagrada Escritura, a “theopneustos”, ou seja, a [palavra] inspirada por Deus. Ofereço-me para defender estes artigos, e estou disposto a ser ensinado,[4] caso não tenha compreendido[5] corretamente a Sagrada Escritura;[6] mas, qualquer correção que me faça permanecer fundamentado somente[7] na Sagrada Escritura.[8]

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[ este texto foi retirado por motivo de publicação ]

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Extraído de James T. Dennison, Jr., ed., Reformed Confessions of the 16th and 17th Centuries in English Translation – 1523-1552 (Grand Rapids, Reformation Heritage Books, 2008), vol. 1, págs. 1-8; ainda, recorrendo ao texto original e notas de Phillip Schaff, “Articuli sive conclusiones LXVII. H. Zwinglii” in: The Creeds of Christendom (Grand Rapids, Baker Books, 2007), vol. 3, pág. 197, e também da tradução hispânica com notas preparadas por M. Gutiérrez Marín, Zuinglio – Antología (Barcelona, Producciones Editoriales del Nordeste, 1973).

Tradução e notas revisadas em 23 de Fevereiro de 2014.
Tradução e notas de Rev. Ewerton B. Tokashiki

Observação: Sou grato ao Rev. Alexandre Ribeiro Lessa por revisar a língua portuguesa e fazer preciosas sugestões de estilo na tradução. Obviamente se ainda há algum erro, assumo toda a responsabilidade.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Discurso pronunciado na Dieta de Worms por Martinho Lutero (1521)

Introdução histórica por Teófanes Egido

Para a compreensão do feito e do significado da atuação de Lutero ante a Dieta de Worms e de seu discurso, é necessário considerar os eventos a seguir. O dia 15 de junho de 1520 traz muitos fatos obscuros com Federico o Sábio, duque da Saxônia eleitoral e – como já vimos – protetor de Lutero. Roma decidiu condenar a doutrina de Augustinho na bula Exsurge, Domine, certamente confusa. Na realidade, o documento ainda não condena a pessoa de Lutero, e já conhecemos a sua reação violenta, que em um ato teatral queimou a bula juntamente com os textos representativos das práticas canônicas e morais da igreja (10 de dezembro). No início do ano seguinte publicou-se a bula Decet romanum pontificem com a excomunhão do “herege”. A excomunhão eclesiástica surtiu efeito por ter sido referendada pela expulsão civil, ou seja, imperial. Não obstante, o jovem imperador Carlos V, pressionado por dificuldades econômicas, pelo compromisso com os costumes alemães, por rivalidades com a cúria de Roma, pelo favor que a opinião pública manifestava por Lutero – convertido em herói dos alemães -, não quis condená-lo sem antes ouvi-lo. Para ele a melhor ocasião era aproveitar a dieta – a primeira imperial - de Worms (aberta solenemente em 27 de janeiro de 1521) e convoca-lo a comparecer.

O tempo transcorrido foi precioso para a causa luterana e, de fato, foi uma das épocas mais relevantes de Lutero, desde o ponto de vista de seus escritos e de sua influência. A convocação para a dieta, por outro lado, lhe serviu como uma invejável oportunidade para sua exposição. Por isso se sentiu expectante e temeroso, na condição de vítima e de herói, percebendo com clareza a magnífica repercussão de um púlpito peculiar (cf. Gravier, o. c., 50 ss).

No dia 17 de abril, ao entardecer, compareceu diante da assembleia. Lutero se viu surpreso: ele havia acreditado em uma oportunidade para pregar suas idéias mas se encontrou em uma condição em que a única opção que lhe era oferecida era de retratar-se ou não do conteúdo de seus livros que Aleandro havia empilhado com cuidado. Diante da surpresa, pediu uma prorrogação e, no dia seguinte, como resposta ao interrogatório, pronunciou o célebre discurso que transcrevemos.

O documento tem um valor transcendental e é, talvez, o reflexo do momento mais decisivo e claro, não somente da existência de Lutero, senão de toda a história de sua reforma. Em tons um pouco dramáticos nega a autoridade do papa, dos concílios, e proclama a autoridade da Escritura e da consciência. Quem viu nele uma proclamação dos direitos da consciência individual pecou por um evidente anacronismo, pois é indiscutível a valentia de Lutero, ainda monge, o qual enfrentou boa parte dos componentes da dieta como arauto da liberdade do evangelho.

A resposta do imperador foi contundente e não menos decisiva: contra a heresia – disse – “estou determinado em empenhar meus reinos e senhorios, meus amigos, meu corpo, meu sangue, minha vida e minha alma” (Sandoval). Nem a decisão nem a contundência de Carlos, ao decretar na dieta a expulsão imperial de Lutero, puderam fazer muita coisa. As dificuldades da Espanha, o perigo da França, o regresso do imperador à agitada Castela, a burocracia, o apoio de alguns senhores, etc, atrasaram a publicação do edito firmado em 26 de maio de 1521, quando Lutero estava em segurança, graças ao sequestro organizado pelo seu protetor.

EDIÇÕES: Nossa tradução se esforçou para transmitir o texto em sua forma mais próxima possível de como foi pronunciado por Lutero. Como base, temos adotado a versão pessoal de Lutero como está contida em Verhandlungent mit D. Martin Luther auf dem Reichstag zu Worms 1521 (Coleção de WA 7, 814-857). Temos a contrastado com a versão do testemunho prescencial J. Cochlaus, Colloquium cum Luthero Wormatiae olim habitum, publicado em Flusgschriften aus den ersten Jahren der Reformation IV, Leipzig 1910, 177-218, com as notícias de A. Wrede, Reichstag zu Worms (1520-1521), Gotha, 1896 (da serie Deutsche Reichstagsakten unter Karl V., vol. II). O texto, com anotações críticas, cf. também em Lab 2, 309-316; em H. Junghaus, Die Reformation in Augenzeugen Berichten, Munchen 1973, 107-112; em Ls 98-102, etc.

BIBLIOGRAFIA. Para os atos, ambientes, etc., da dieta, cf. P. de Sandoval, Historia de la vida e hechos del emperador Carlos V (edic. BAE, 80), Madrid 1955; Relación de lo que pasó al emperador em Bormes com Lutero em 1521 (publicado por A. Wrede, o. c., 632-638, y por A. Morel-Fatio em Bulletin Hispanique 16 [1914] 35-46). Últimos trabalhos relacionados com o tema: E. Kessel, Luther vor dem Rechstag im Worms 1521, em Festgabe fur Paul Kirn, Berlin 1961, 172-190. Por ocasião do 450º aniversário do sucesso editaram numerosos estudos, entre os que citamos como mais representativos e equilibrados, alguns dos contidos no volume Der Reichstag zu Worms von 1521. Reichspolitik und Luthersache, edit. Por F. Reuter, Worms 1971: R. Wohlfeil, Der Wormser Reichstag von 1521, 59-154; M. Schmidt, Luther charismatischer Reformationsbegriff und der Reichstag zu Worms, 155-207; R. Schwarz, Luthers Erscheinen auf dem Reichstag in der Sicht Thomas Muntzers, 208-221; H. Wolter, Das bekenntnis zu Worms 1521, 222-236; E. W. Kohls, Die Bedeutung des Verhaltens Luthers in Worms innerhalb der neueren Historiographie: Archiv fur Reformationsgeschichte 62 (1972) 43-71; H. Steitz, Marthin Luther auf dem Reichstag zu Worms 1521: Blatter fur Pfalzische Kirchengeschichte 39 (1972) 112-133.


Jesus.
Excelentíssimo senhor imperador, mui ilustres príncipes, mui graciosos senhores:

Compareço pontual e obediente, à hora que me determinou ontem à tarde, e suplico a vossa graciosíssima majestade e aos ilustríssimos príncipes e senhores que, pela misericórdia de Deus, se dignem atender com clemência esta minha causa, que espero seja a causa da justiça e da verdade. E se por minha inexperiência me dirijo a alguém de forma incorreta, ou de alguma maneira me comportar contra os usos e costumes da corte, rogo que me desculpem com benevolência, porque não tenho vivido na corte, mas no isolamento do monastério, e a única coisa que posso dizer é que até hoje minhas únicas preocupações tem sido, tanto em minha docência como em meus escritos, a glória de Deus e a instrução dos fiéis de coração humilde.

Excelentíssimo imperador, ilustres príncipes: vossa sereníssima majestade me levantou ontem duas questões: se reconhecia como meus os livros que se multiplicam e tem sido publicados em meu nome, e se estava disposto a seguir os defendendo ou negá-los.

Sobre o primeiro ponto minha resposta é simples; sem dúvida, me mantenho com ela e seguirei mantendo-a sempre: se trata de livros meus, que foram publicados em meu próprio nome, mas sempre com as possíveis mudanças e interpretações mal feitas que devem ser atribuídas à astúcia ou a importuna sabedoria de meus adversários. Em todo caso, reconheço somente o que é meu e o que por mim foi escrito; mas não as interpretações de meus adversários.

Quanto à segunda questão, suplico à vossa serene majestade, se digne levar em conta que meus livros não são todos da mesma classe.

Há um primeiro grupo de escritos nos quais trato da fé e costumes de uma maneira tão simples e evangélica, que até meus adversários se veem obrigados a reconhecerem sua utilidade e sua inocuidade, e que são dignos de ser lidos por um cristão. A mesma bula do papa, por mais implacável e cruel que seja,[1] admite que alguns destes livros são inofensivos, embora, por um juízo estranho, os haja condenado. O que aconteceria se eu decidisse retratá-los? Seria o único dos mortais que condenaria a verdade que amigos e inimigos confessam de comum acordo, o único em resistir à unanimidade desta confissão.

Outra categoria de escritos é a que ataca o papado e as empresas de seus seguidores, posto que sua péssima doutrina e exemplo tem arrastado a toda a cristandade para a destruição espiritual e corporal. Porque todo o mundo tem a experiência, testemunhada pelo general descontente, de que as leis dos papas e suas doutrinas humanas tem escravizado miseravelmente as consciências dos fiéis, as tem atormentado e torturado; que a incrível tirania tem devorado os bens e os recursos, e os segue devorando de forma insultante cada vez mais sobre todos em nossa nobre nação alemã. Além disso, seus próprios decretos (por exemplo, Dist. 9, 25, quaest. 1 e 2) apresentam como errôneas e inválidas as leis papais que estão em contradição com o ensinamento do evangelho e dos pais da igrejas.[2] Se eu retratasse também estes livros, não faria mais do que fortificar sua tirania e abrir de par em par a tão grande impiedade não somente uma pequena janela, mas também todas as portas, para que aquela entrasse de forma mais ampla bem como a comodidade que jamais até agora teve. Minha retratação seria o melhor favor concedido a sua ilimitada e desavergonhada malícia, e daria vigor e estabilidade a este senhorio cada vez mais intolerável para o miserável povo, e mais se anuncia que fiz tudo isto por ordem de vossa serena majestade e de todo o império romano. Grande Deus, que estupenda ocasião serviria para encobrir a malícia e a tirania!

A terceira categoria é a constituída pelos livros que escrevi para certas pessoas particulares, empenhadas em amparar a tirania romana e em destruir meus ensinamentos sobre a fé. Confesso que contra esta gente tenho me comportado mais duramente do que convém a um homem que tem professado a uma religião. Tenho que acrescentar que não me considero um santo; não se trata aqui de discutir sobre minha vida, mas sobre o que se ensina sobre Jesus Cristo. Menos ainda que os anteriores me está permitido retratar estes escritos, porque, se o fizesse, serviria de reivindicação para que a tirania e a impiedade reinassem e se desencadeassem contra o povo de Deus com maior violência que antes.

Considerando que sou homem e não Deus, não me é lícito defender meus escritos mas a maneira em que Jesus Cristo meu Senhor defendeu seus ensinamentos diante de Anás quando este lhe interrogava e um soldado lhe deu uma bofetada: “Se tem falado mal, lhe digo, mostre-me em que”.[3] Se o próprio Senhor, que tinha certeza de sua inerrância, não se recusou ao menos escutar a contestação de seu ensinamento, ainda que fosse por parte do mais humilde dos soldados, com quanta maior razão eu, escória da plebe, constantemente exposto ao erro, devo desejar suplicar que se conteste minha doutrina. Por este motivo, rogo a vossa serena majestade, a vós outros, ilustres senhores e a todos os que possam fazê-lo, tanto o maior como o menor, pela misericórdia de Deus, que me provem e me convençam de meus erros, que se refute a base dos escritos proféticos e evangélicos. Se concluir-se que devo instruir-me melhor, nada melhor disposto que eu retratar qualquer erro, seja o que for, eu seria o primeiro a lançar meus escritos nas chamas.

O que acabo de dizer evidencia que tenho considerado e ponderado suficientemente as urgências, perigos, inquietudes e dissenções que surgiram no mundo por ocasião de meus ensinamentos, como me censurou ontem com energia e gravidade. O que mais me alegra em tudo isto é contrastar que por causa da palavra de Deus nascem paixões e dissenções, porque este é o caminho, a maneira e o acontecimento que segue a palavra de Deus sobre a terra conforme a afirmação de Cristo: “Não vim para trazer paz, digo, mas a guerra; eu vim para separar o filho do pai, etc.”[4] É necessário que nos despertemos para o quão admirável e terrível é nosso Deus em seus juízos, para que o anseio de apaziguar os distúrbios não comece por rejeitar a palavra de Deus, nem venha a ser que este intento nos atraia um dilúvio de desgraças insuportáveis. Devemos vigiar para que o reinado de nosso jovem e privilegiado príncipe Carlos (em quem, depois de Deus, se depositam tão grandes esperanças) não seja desgraçado e se inaugure com auspícios funestos.[5]

Poderia respaldar tudo isto com numerosos exemplos das Escrituras Sagradas que se referem ao Faraó, ao rei de Babilônia e aos reis de Israel, personagens que conheceram os maiores desastres precisamente quando seus sábios desígnios se ordenavam a estabelecer a paz e afirmar seus reinados. “Porque é ele quem surpreende aos sábios em sua sabedoria e transporta as montanhas sem que se apercebam disso”.[6] É preciso, pois, temer a Deus. Se falo estas coisas, não é porque creio que em elevadas cúpulas tenham necessidade de meus ensinamentos e advertências, mas não posso subtrair da minha Alemanha o serviço a que estou obrigado.

E com estas palavras me recomendo a vossa serena majestade e a vossos senhores, suplicando humildemente que não permitam que as paixões de meus adversários me façam injustamente detestável diante de vós.

Eu disse.

(Depois que eu falei desta forma, o arauto imperial me quis repreender com dureza. Disse que não me havia inserido no assunto e que não era possível voltar a discutir ponto que já haviam sido condenados e definidos pelos concílios. Me obrigou então uma resposta simples e sem sutilezas; “Queria retratar-me ou não?” Tenho aqui o que então respondi).

Posto que vossa graciosa majestade e vossos senhores me pedem uma resposta, então a darei “sem chifres ou dentes”:[7] A menos que se me convença por testemunho da Escritura ou por razões evidentes – posto que não creio no papa nem nos concílios somente, já que está claro que eles tem se equivocado com frequência e tem se contradito entre eles mesmos -, estou acorrentado pelos textos escriturísticos que tenho citado e minha consciência é uma escrava da palavra de Deus. Não posso nem quero retratar-me em nada, porque não é seguro nem honesto atuar contra a própria consciência. Que Deus me ajude. Amém.[8]


NOTAS:
[1] A bula Exsurge, Domine (15 de junho 1520), que condenava 41 pontos da doutrina de Lutero. Mesclando capítulos heréticos com os que não eram, escrita por inspiração de inimigos de Lutero, não duvidemos que no documento escapa a condenação da tese básica da justificação pela fé somente.
[2] Se refere ao Decreto de Graciano (século XII), praticamente o corpo jurídico da igreja durante muito tempo.
[3] João 18, 23.
[4] Mt 10, 34 ss.
[5] A coroação imperial de Carlos V havia tido lugar em Aquisgrán meio ano antes, 23 de outubro de 1520.
[6] Jó 5, 13; 9, 5.
[7] “Sem chifres ou dentes”: coro escolástico para expressar uma sentença clara, simples e com um só sentido.
[8] A conclusão do histórico discurso de Lutero tem desencadeado discussões incontáveis. Até mesmo a edição de Weimar termina com as frases: “Ich kann nicht anders, hier stehe ich. Gott helfe mir, amen” (Não posso atuar de outra maneira, aqui estou. Que Deus me ajude, amém). Hoje se admite como a única versão autêntica a usada em nosso texto, muito mais provável e em conformidade com os testemunhos, mesmo que o atemorizado Lutero despoje algo de seu caráter de herói e de mártir. O acréscimo apócrifo, que não recolhem os testemunhos oculares, nem sequer Cochleo, começou pronto a executar como pronunciado por Lutero desde a edição do texto (em latim e alemão) por Gruneberg, Wittenberg. Já insistiu nele K. Muller, Luthers Schlusswort in Worms 1521, em Philotesia. Festschrift fur P. Kleinert, Berlin 1907, 269-289.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 171-175.

Traduzido em 16 de Fevereiro de 2014.
Rev. Evanderson Henrique da Cunha, M.Div.
Coordenador do Seminário Presbiteriano Brasil Central - Extensão Rondônia
Professor do Departamento Teologia Pastoral

Oração de Philip Melanchthon

A ti, ó Filho de Deus, Restaurador da imagem desfigurada e deformada de Deus no homem, que morreste pelos nossos pecados e ressuscitaste par...