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segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Carta de Martinho Lutero a Johannes Staupiz [Setembro de 1521]

A Staupitz. 9 de Setembro de 1521[1]


Jesus. Saudações. Em nada me preocupa a crítica do Capitão[2], nem a de Erasmo, nem me altera a opinião que sobre eles tenho formada. Temi que teria que me explicar com eles, até que me dei conta de que Erasmo estava muito longe do conhecimento da graça, sendo que, em todos os seus escritos não recorre à cruz, senão à paz. Ele crê que tudo pode ser tratado com certa cortesia e benevolência; mas, Behemoth[3] não anda com estas cerimônias e esse sistema é recomendado a ninguém.

Recordo o que aplicava em seu prólogo ao Novo Testamento: “O cristão tem facilidade de depreciar a glória.” Eu pensava comigo: “Oh! Erasmo, muito temo que esteja equivocado!” Grande coisa é depreciar a glória, mas não se referia ao desprezo que lhe poderiam fazer, senão ao que tinha em seu pensamento. Se não tem nenhum significado o desprezo da glória da palavra, menos valor terá o que existe somente no pensamento. Assim, segundo são Paulo “o reino de Deus está no poder”;[4] por isso, ainda não pude me gloriar em nada mais do que da palavra da verdade que me confiou o Senhor.

E por isso, os escritos destes homens que se abstêm de chicotear, de morder, de ofender, nada conseguem. Corrigem educadamente aos pontífices, o tomam como uma lisonja, e como se gozassem do direito de serem incorrigíveis, continuam tão satisfeitos de serem grandes e de que ninguém se atreva a repreendê-los. Estes são os personagens representados por Plutarco em seu livro Da Adulação, e aos que Jeremias fustiga de maneira mais severa e terrível: “maldito quem realiza fraudulentamente o trabalho do Senhor.”[5] Fala da ação da espada contra os inimigos de Deus. Inclusive me assusta e me ofende a consciência porque em Worms fiz caso do conselho que você me deu e os amigos, e não me mostrei forte de espírito, nem me exibi como um novo Elias diante daqueles ídolos.[6] Ouviriam outra coisa se comparecesse novamente diante deles. Mas não falemos mais disto.

O duque João, o Maior, está inteirado de meu paradeiro,[7] coisa que até o momento ignorava; meu anfitrião tem mantido em segredo, mas saberá calar. Encontro-me bem aqui, mas, miserável que sou, me faço preguiçoso, definho no espírito. Hoje, depois de seis dias, fiz do ventre fezes muito duras, que acreditei que exalaria a alma. Agora estou sentado, sentindo dor como uma recém-parida, lacerado, ferido, sangrando, e esta noite não terei nenhum descanso, mesmo que pouco. Dou graças a Cristo que não me priva de alguns dos fragmentos da santa cruz. Estaria curado de todas as feridas se tivesse o ventre ligeiro; mas o que sara em quatro dias volta a abrir toda vez que vou defecar. Digo a você estas coisas, não para que se compadeça de mim, mas para que me congratule e rogue para que me faça digno de fervor espiritual. Chegou o tempo de orar com todas as forças contra Satanás, porque anda gestando alguma tragédia funesta contra a Alemanha. Estou temendo que o Senhor permita e aqui me tenha roncando e vagaroso para orar, resistir, até tal ponto que estou violentamente descontente e cansado de mim mesmo, porque me encontro sozinho e vocês não me ajudam. Oremos e vigiemos para não entrar em tentação.[8] Por hora não tenho mais o que te dizer. Você sabe das demais coisas.

Alegro-me de que Wittenberg prospere, tanto mais porque isto ocorre durante a minha ausência, para que o ímpio veja, se irrite e pereça os seus desejos.[9] Que Cristo termine o que ele começou. Desejaria vividamente que Felipe[10] pregasse às pessoas em algum lugar da cidade nos dias de festa, quando aos poucos se entregarão à bebida e aos jogos, para que se introduzisse o hábito da liberdade[11] e se restituam a face e os costumes da igreja primitiva. Porque se desvalorizado a todas as leis humanas e rejeitado os seus jugos, então, por que é um obstáculo o fato de que não esteja ungido ou tonsurado e que seja casado? Se o anunciar a palavra é uma função sacerdotal, ele é um sacerdote e como sacerdote atua de fato; de outra forma, nem Cristo seria sacerdote, ele que ensinava nas sinagogas, nas barcas e beira mar, nas montanhas: sempre foi o mesmo em todos os lugares e em todos os momentos. Portanto, que não se negue a ninguém que sendo chamado por Deus e que exercendo o ministério da palavra, porque importa que mesmo não sendo chamado por estes tiranos, ou seja, bispos não das igrejas, senão de cavalos e lacaios de príncipes? Não obstante, conheço muito bem os sentimentos deste homem e sei que não se convencerá por minhas razões.

Tem que ser chamado e urgido por mandato e impulso de toda a comunidade. Se ela pede e lhe exige, não se deve, nem pode recusar. Se estivesse presente engajaria todo o meu esforço com o conselho e povo para que lhe pedissem que explicassem o evangelho em privado e em alemão, como comecei a fazê-lo em latim: assim, o bispo converteria em alemão o mesmo que o é em latim. Eu sentiria muita satisfação que fizesses de tua parte tal coisa uma realidade, porque o que mais urgentemente necessita o povo é a palavra de Deus; e que esta abunde no mais generosamente que em todos os demais, ao menos que, urgindo-o a consciência e exigindo-o a Deus, temos a obrigação de chamar-lhe para que não se desperdice o fruto da palavra.

A ti será fácil tratar este assunto no conselho por mediação de Lucas e Cristian[12] para que Cristo vindique a minha ausência e meu silêncio com a sua pregação e sua voz para confusão de Satanás e suas crias. Orígenes ensinou de modo privado as mulheres[13], então, por que motivo ele não tenta fazer o mesmo, sendo que ele pode e deve fazê-lo? E ainda mais quando o povo está necessitado e sedento. Rogo a você que não deixe se vencer por desculpas. Redigirá textos formosos que é algo que lhe é conveniente. Não há motivo para ambicioná-lo, mas tem que ser insistentemente chamado pela igreja, inclusive até solicitado para que este serviço e faça não o que seja útil para ele, senão que o que proveitoso para muitos. Ainda te suplico: coloque maior diligência em fixa-lo, ajudando-o com amigos que juntos possam apoiá-lo.

E adeus. Lembre-se de mim diante o Senhor.

Do deserto,[14] dia seguinte à natividade de Maria, 1521. Teu Martinus Luther.


NOTAS:
[1] WA Br 2, 387-389.
[2] Capitão a esta altura era um dos humanistas que se aproximava de Erasmo em Basiléia.
[3] Jó 40:15ss.
[4] 1 Co 4:20.
[5] Jr 48:10.
[6] 1 Rs 18:20ss.
[7] Irmão de Frederico, o Sábio.
[8] Mt 26:41.
[9] Sl 112:10.
[10] Felipe Melanchthon.
[11] Lutero pensa na liberdade da palavra de Deus, da pregação, e no sacerdócio universal dos crentes.
[12] Lucas Cranach, o célebre pintor, e Cristian Düring, o mais conhecido e talvez o maior impressor de Wittenberg, ambos seus amigos.
[13] Jerônimo, De viris illustribus, 54 (ML 23, 699).
[14] Denominação que ele aplica aos seus retiros forçados, agora em Warturb, logo (1530) nas cartas de Coburgo.

Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), p. 388-390.

Tradução em 5 de Janeiro de 2015.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Carta de Martinho Lutero a George Spalatino [1521]

A Spalatino. 14 de Maio de 1521[1]

Ao seu caríssimo e fidelíssimo servo em Cristo, George Spalatino, em Altenburg.

Jesus. Saudações. Recebi a sua carta, assim como as de Gerbel e Sapido, na domínica Exaudi, querido Spalatino. Atrasei deliberadamente a contestação para que o ruído recente de meu cativeiro não desse motivo para que alguém interceptasse as cartas. Por aqui correm muitos rumores sobre mim; não obstante, prevalece a opinião de que fui capturado por amigos enviados da Franconia. Amanhã expira o prazo do salvo-conduto imperial.[2] Causa-me dor o que me disse do rigorosíssimo edito que dará motivo para violentar até as consciências[3]; e não é algo que dói por mim, mas porque sua imprudência acabará arrojando todo o mal sobre suas cabeças e porque estão incitando cada vez mais ódio. Quanto ódio suscitará está vergonhosa violência! Mas deixe-o; possivelmente esteja chegando o tempo de sua visitação.[4]

Continuo sem notícias acerca dos nossos de Wittenberg e dos demais lugares. Enquanto íamos a Eisenach a juventude de Erfurt assaltou durante a noite as casas de alguns sacerdotes; estava indignado porque o decano de são Severino, grande papista, agarrando-os pela gola das vestes, expulsou publicamente do coro o mestre Drach, sob o pretexto de que estava excomungado, pela simples razão de que, junto conosco, saiu para me receber quando cheguei a Erfurt. Entretanto, aguardam que outras coisas aconteçam. O conselho anda dissimulando; os sacerdotes não tendo boa reputação ali, e dizem que a juventude artesã anda conspirando com os estudantes. Possivelmente está próximo o cumprimento do provérbio “Erfordia Praga”.[5]

Contaram-me ontem que em Gotha, certo sacerdote foi mal recebido porque havia comprado não sei o que para incrementar os ingressos da igreja e, com a desculpa de isenção eclesiástica, negou-se pagar os impostos e tributos. Podemos perceber que o povo não pode nem quer continuar aguentando o jugo papista, como disse Erasmo em sua Boulé.[6] Não cessamos de urgi-lo e dar-lhe importância, porque, graças a luz reveladora de tudo, temos prescindido da fama, da opinião, e aquele tipo de piedade não vale, nem reina, como não reinou até agora. Veremos se de agora em diante, oprimindo e aumentando tudo como até este momento fizeram.

Da minha parte aqui estou todos os dias sentado, ocioso e crapuloso. Estou lendo a Bíblia em hebraico e grego. Vou escrever um sermão em alemão sobre a liberdade da confissão auricular, continuarei com os Salmos e os comentários, desde que receba de Wittenberg algumas coisas necessárias, entre as quais se encontra o Magnificat que comecei.

Você não faz ideia da amabilidade com o que o abade de Hersfeld nos acolheu.[7] Ele fez com que o seu chanceler e seu tesoureiro saíssem ao nosso encontro a uma légua de larga distância; depois, o mesmo com muitos cavaleiros nos recebeu à entrada de seu castelo e nos acompanhou até a cidade. Nela fomos recebidos pelo conselho. Descansamos em seu monastério e me alojou em seu próprio quarto. Obrigaram-me a pregar um sermão às cinco da manhã, apesar de que lhes adverti que se expunham a perder os seus benefícios, se a notícia chegasse aos imperiais, que o interpretariam como uma violação da promessa dada ao mandato de não pregar em meu itinerário. Entretanto, disse-lhes que não havia consentido em que se atasse a Palavra de Deus, como era a verdade. Também preguei em Eisenach apesar do protesto do acovardado pároco ante o notário e testemunhas presentes, alegando com humildade de ser necessário a isto, por medo de seus tiranos. Talvez em Worms digam que com isto violei a promessa, mas não foi assim, porque não dependia de minha condição de atar a Palavra de Deus, nem prometi isto; e ainda, de ir contra Deus, e muito menos poderia observá-lo ainda que houvesse prometido. Ao dia seguinte nos acompanhou até a selva e havendo o seu chanceler se unido a nós, nos ofereceu comida a todos em Berka. Por fim, e depois de partir todo este acompanhamento com Jerônimo, entramos pela tarde em Eisenach e fomos recebidos pelos cidadãos do local que a pé, saíram ao nosso encontro.

Através da selva fui visitar aos meus parentes que estão espalhados por quase toda a região. Despedi-me deles, e quando nos dirigíamos a Walterhausen, um pouco além das proximidades de Altenstein, fui capturado. Amsdorf[8] estava forçosamente informado de que alguém planejava sequestrar-me, mas ignora o lugar de meu cativeiro. O irmão que ia comigo[9] ao perceber a tempo os cavaleiros, saltou do carro e dizem que chegou a pé, pela tarde, em Walterhausen, sem que ninguém lhe saudasse.

Aqui em encontro, despojado de meu hábito, disfarçado de cavaleiro, com barba e cabelos longos. Seria difícil para você me reconhecer, porque há muito tempo que nem eu mesmo me conheço. Atuo com liberdade cristã, livre de todas as leis desse tirano, se bem que é verdade que eu gostaria que o porco de Dresden[10] se dignasse em matar-me por pregar em público, se é que Deus lhe agrada que padeça por sua Palavra.

Adeus e rogue por mim. Saudações a toda a tua corte.

No Monte, terça-feira da domínica Exaudi, 1521.
Martinus Luterus.


NOTAS:
[1] WA Br 2, pp. 337-338. Incluímos esta carta por expressar e recompor o retorno de Lutero de Worms e os sentimentos que o animam em seu retiro forçado em Wartburg, onde disfarçado passaria 300 dias e conhecido pelo “cavaleiro George”.
[2] Refere-se ao salvo-conduto expedido por Carlos V, no dia 25 de Abril e válido por 21 dias.
[3] O edito imperial de proscrição com todos os efeitos conseguintes (qualquer um poderia atentar com toda tranquilidade contra a vida do proscrito), estava redigido, ainda que tardaria algo em promulgar-se. Este é o motivo de que toda a vida posterior de Lutero transcorra na Saxônia.
[4] Jr 46:21.
[5] Reproduz um provérbio popular que fazia referência aos sucessos que em 1409 registra-se ocorrem na cidade de Praga. O rei da Bohemia reformou o estudo e concedeu a independência a “nação” Tcheca, em prejuízo da Alemanha, que era quem a dominava naqueles dias de Huss. Os alemães, em parte, recorreram a Erfurt, primeira universidade de Lutero.
[6] Consilium cuiusdam exa animo cupientis que apareceu entre 1520-1521, que literalmente diz citado por Lutero, e que certamente não era de paternidade erasmiana.
[7] Era abade do monastério de Hersfeld naquelas circunstâncias Kraft Myle.
[8] Nicolas de Amsdorf (1483-1565), professor de Wittenberg, companheiro de Lutero e um de seus mais próximos amigos e colaboradores. Se tornaria no representante da ortodoxia luterana contra os “desvios” irenistas e sinergistas de Melanchthon e do “luteranismo”. Consagrado bispo de Naumburg por Lutero (1542). Cf. P. Brunner, Nikolaus von Amsdorf als Bischof von Naumburg, Gütersloh 1961.
[9] O irmãos agostiniano J. Petzensteiner, companheiro com Amsdorf deste velhor regresso de Worms e testemunha do sequestro simulado. Cf. M. Simon, Johannes Petzensteiner, Luthers Reisebegleiter in Worms: Zeitschrift für bayerische Kirchengeschichte 35 (1966), pp. 113-137.
[10] O duque George da Saxônia.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp.383-385.
Tradução com introdução e notas em 12 de Abril de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Discurso pronunciado na Dieta de Worms por Martinho Lutero (1521)

Introdução histórica por Teófanes Egido

Para a compreensão do feito e do significado da atuação de Lutero ante a Dieta de Worms e de seu discurso, é necessário considerar os eventos a seguir. O dia 15 de junho de 1520 traz muitos fatos obscuros com Federico o Sábio, duque da Saxônia eleitoral e – como já vimos – protetor de Lutero. Roma decidiu condenar a doutrina de Augustinho na bula Exsurge, Domine, certamente confusa. Na realidade, o documento ainda não condena a pessoa de Lutero, e já conhecemos a sua reação violenta, que em um ato teatral queimou a bula juntamente com os textos representativos das práticas canônicas e morais da igreja (10 de dezembro). No início do ano seguinte publicou-se a bula Decet romanum pontificem com a excomunhão do “herege”. A excomunhão eclesiástica surtiu efeito por ter sido referendada pela expulsão civil, ou seja, imperial. Não obstante, o jovem imperador Carlos V, pressionado por dificuldades econômicas, pelo compromisso com os costumes alemães, por rivalidades com a cúria de Roma, pelo favor que a opinião pública manifestava por Lutero – convertido em herói dos alemães -, não quis condená-lo sem antes ouvi-lo. Para ele a melhor ocasião era aproveitar a dieta – a primeira imperial - de Worms (aberta solenemente em 27 de janeiro de 1521) e convoca-lo a comparecer.

O tempo transcorrido foi precioso para a causa luterana e, de fato, foi uma das épocas mais relevantes de Lutero, desde o ponto de vista de seus escritos e de sua influência. A convocação para a dieta, por outro lado, lhe serviu como uma invejável oportunidade para sua exposição. Por isso se sentiu expectante e temeroso, na condição de vítima e de herói, percebendo com clareza a magnífica repercussão de um púlpito peculiar (cf. Gravier, o. c., 50 ss).

No dia 17 de abril, ao entardecer, compareceu diante da assembleia. Lutero se viu surpreso: ele havia acreditado em uma oportunidade para pregar suas idéias mas se encontrou em uma condição em que a única opção que lhe era oferecida era de retratar-se ou não do conteúdo de seus livros que Aleandro havia empilhado com cuidado. Diante da surpresa, pediu uma prorrogação e, no dia seguinte, como resposta ao interrogatório, pronunciou o célebre discurso que transcrevemos.

O documento tem um valor transcendental e é, talvez, o reflexo do momento mais decisivo e claro, não somente da existência de Lutero, senão de toda a história de sua reforma. Em tons um pouco dramáticos nega a autoridade do papa, dos concílios, e proclama a autoridade da Escritura e da consciência. Quem viu nele uma proclamação dos direitos da consciência individual pecou por um evidente anacronismo, pois é indiscutível a valentia de Lutero, ainda monge, o qual enfrentou boa parte dos componentes da dieta como arauto da liberdade do evangelho.

A resposta do imperador foi contundente e não menos decisiva: contra a heresia – disse – “estou determinado em empenhar meus reinos e senhorios, meus amigos, meu corpo, meu sangue, minha vida e minha alma” (Sandoval). Nem a decisão nem a contundência de Carlos, ao decretar na dieta a expulsão imperial de Lutero, puderam fazer muita coisa. As dificuldades da Espanha, o perigo da França, o regresso do imperador à agitada Castela, a burocracia, o apoio de alguns senhores, etc, atrasaram a publicação do edito firmado em 26 de maio de 1521, quando Lutero estava em segurança, graças ao sequestro organizado pelo seu protetor.

EDIÇÕES: Nossa tradução se esforçou para transmitir o texto em sua forma mais próxima possível de como foi pronunciado por Lutero. Como base, temos adotado a versão pessoal de Lutero como está contida em Verhandlungent mit D. Martin Luther auf dem Reichstag zu Worms 1521 (Coleção de WA 7, 814-857). Temos a contrastado com a versão do testemunho prescencial J. Cochlaus, Colloquium cum Luthero Wormatiae olim habitum, publicado em Flusgschriften aus den ersten Jahren der Reformation IV, Leipzig 1910, 177-218, com as notícias de A. Wrede, Reichstag zu Worms (1520-1521), Gotha, 1896 (da serie Deutsche Reichstagsakten unter Karl V., vol. II). O texto, com anotações críticas, cf. também em Lab 2, 309-316; em H. Junghaus, Die Reformation in Augenzeugen Berichten, Munchen 1973, 107-112; em Ls 98-102, etc.

BIBLIOGRAFIA. Para os atos, ambientes, etc., da dieta, cf. P. de Sandoval, Historia de la vida e hechos del emperador Carlos V (edic. BAE, 80), Madrid 1955; Relación de lo que pasó al emperador em Bormes com Lutero em 1521 (publicado por A. Wrede, o. c., 632-638, y por A. Morel-Fatio em Bulletin Hispanique 16 [1914] 35-46). Últimos trabalhos relacionados com o tema: E. Kessel, Luther vor dem Rechstag im Worms 1521, em Festgabe fur Paul Kirn, Berlin 1961, 172-190. Por ocasião do 450º aniversário do sucesso editaram numerosos estudos, entre os que citamos como mais representativos e equilibrados, alguns dos contidos no volume Der Reichstag zu Worms von 1521. Reichspolitik und Luthersache, edit. Por F. Reuter, Worms 1971: R. Wohlfeil, Der Wormser Reichstag von 1521, 59-154; M. Schmidt, Luther charismatischer Reformationsbegriff und der Reichstag zu Worms, 155-207; R. Schwarz, Luthers Erscheinen auf dem Reichstag in der Sicht Thomas Muntzers, 208-221; H. Wolter, Das bekenntnis zu Worms 1521, 222-236; E. W. Kohls, Die Bedeutung des Verhaltens Luthers in Worms innerhalb der neueren Historiographie: Archiv fur Reformationsgeschichte 62 (1972) 43-71; H. Steitz, Marthin Luther auf dem Reichstag zu Worms 1521: Blatter fur Pfalzische Kirchengeschichte 39 (1972) 112-133.


Jesus.
Excelentíssimo senhor imperador, mui ilustres príncipes, mui graciosos senhores:

Compareço pontual e obediente, à hora que me determinou ontem à tarde, e suplico a vossa graciosíssima majestade e aos ilustríssimos príncipes e senhores que, pela misericórdia de Deus, se dignem atender com clemência esta minha causa, que espero seja a causa da justiça e da verdade. E se por minha inexperiência me dirijo a alguém de forma incorreta, ou de alguma maneira me comportar contra os usos e costumes da corte, rogo que me desculpem com benevolência, porque não tenho vivido na corte, mas no isolamento do monastério, e a única coisa que posso dizer é que até hoje minhas únicas preocupações tem sido, tanto em minha docência como em meus escritos, a glória de Deus e a instrução dos fiéis de coração humilde.

Excelentíssimo imperador, ilustres príncipes: vossa sereníssima majestade me levantou ontem duas questões: se reconhecia como meus os livros que se multiplicam e tem sido publicados em meu nome, e se estava disposto a seguir os defendendo ou negá-los.

Sobre o primeiro ponto minha resposta é simples; sem dúvida, me mantenho com ela e seguirei mantendo-a sempre: se trata de livros meus, que foram publicados em meu próprio nome, mas sempre com as possíveis mudanças e interpretações mal feitas que devem ser atribuídas à astúcia ou a importuna sabedoria de meus adversários. Em todo caso, reconheço somente o que é meu e o que por mim foi escrito; mas não as interpretações de meus adversários.

Quanto à segunda questão, suplico à vossa serene majestade, se digne levar em conta que meus livros não são todos da mesma classe.

Há um primeiro grupo de escritos nos quais trato da fé e costumes de uma maneira tão simples e evangélica, que até meus adversários se veem obrigados a reconhecerem sua utilidade e sua inocuidade, e que são dignos de ser lidos por um cristão. A mesma bula do papa, por mais implacável e cruel que seja,[1] admite que alguns destes livros são inofensivos, embora, por um juízo estranho, os haja condenado. O que aconteceria se eu decidisse retratá-los? Seria o único dos mortais que condenaria a verdade que amigos e inimigos confessam de comum acordo, o único em resistir à unanimidade desta confissão.

Outra categoria de escritos é a que ataca o papado e as empresas de seus seguidores, posto que sua péssima doutrina e exemplo tem arrastado a toda a cristandade para a destruição espiritual e corporal. Porque todo o mundo tem a experiência, testemunhada pelo general descontente, de que as leis dos papas e suas doutrinas humanas tem escravizado miseravelmente as consciências dos fiéis, as tem atormentado e torturado; que a incrível tirania tem devorado os bens e os recursos, e os segue devorando de forma insultante cada vez mais sobre todos em nossa nobre nação alemã. Além disso, seus próprios decretos (por exemplo, Dist. 9, 25, quaest. 1 e 2) apresentam como errôneas e inválidas as leis papais que estão em contradição com o ensinamento do evangelho e dos pais da igrejas.[2] Se eu retratasse também estes livros, não faria mais do que fortificar sua tirania e abrir de par em par a tão grande impiedade não somente uma pequena janela, mas também todas as portas, para que aquela entrasse de forma mais ampla bem como a comodidade que jamais até agora teve. Minha retratação seria o melhor favor concedido a sua ilimitada e desavergonhada malícia, e daria vigor e estabilidade a este senhorio cada vez mais intolerável para o miserável povo, e mais se anuncia que fiz tudo isto por ordem de vossa serena majestade e de todo o império romano. Grande Deus, que estupenda ocasião serviria para encobrir a malícia e a tirania!

A terceira categoria é a constituída pelos livros que escrevi para certas pessoas particulares, empenhadas em amparar a tirania romana e em destruir meus ensinamentos sobre a fé. Confesso que contra esta gente tenho me comportado mais duramente do que convém a um homem que tem professado a uma religião. Tenho que acrescentar que não me considero um santo; não se trata aqui de discutir sobre minha vida, mas sobre o que se ensina sobre Jesus Cristo. Menos ainda que os anteriores me está permitido retratar estes escritos, porque, se o fizesse, serviria de reivindicação para que a tirania e a impiedade reinassem e se desencadeassem contra o povo de Deus com maior violência que antes.

Considerando que sou homem e não Deus, não me é lícito defender meus escritos mas a maneira em que Jesus Cristo meu Senhor defendeu seus ensinamentos diante de Anás quando este lhe interrogava e um soldado lhe deu uma bofetada: “Se tem falado mal, lhe digo, mostre-me em que”.[3] Se o próprio Senhor, que tinha certeza de sua inerrância, não se recusou ao menos escutar a contestação de seu ensinamento, ainda que fosse por parte do mais humilde dos soldados, com quanta maior razão eu, escória da plebe, constantemente exposto ao erro, devo desejar suplicar que se conteste minha doutrina. Por este motivo, rogo a vossa serena majestade, a vós outros, ilustres senhores e a todos os que possam fazê-lo, tanto o maior como o menor, pela misericórdia de Deus, que me provem e me convençam de meus erros, que se refute a base dos escritos proféticos e evangélicos. Se concluir-se que devo instruir-me melhor, nada melhor disposto que eu retratar qualquer erro, seja o que for, eu seria o primeiro a lançar meus escritos nas chamas.

O que acabo de dizer evidencia que tenho considerado e ponderado suficientemente as urgências, perigos, inquietudes e dissenções que surgiram no mundo por ocasião de meus ensinamentos, como me censurou ontem com energia e gravidade. O que mais me alegra em tudo isto é contrastar que por causa da palavra de Deus nascem paixões e dissenções, porque este é o caminho, a maneira e o acontecimento que segue a palavra de Deus sobre a terra conforme a afirmação de Cristo: “Não vim para trazer paz, digo, mas a guerra; eu vim para separar o filho do pai, etc.”[4] É necessário que nos despertemos para o quão admirável e terrível é nosso Deus em seus juízos, para que o anseio de apaziguar os distúrbios não comece por rejeitar a palavra de Deus, nem venha a ser que este intento nos atraia um dilúvio de desgraças insuportáveis. Devemos vigiar para que o reinado de nosso jovem e privilegiado príncipe Carlos (em quem, depois de Deus, se depositam tão grandes esperanças) não seja desgraçado e se inaugure com auspícios funestos.[5]

Poderia respaldar tudo isto com numerosos exemplos das Escrituras Sagradas que se referem ao Faraó, ao rei de Babilônia e aos reis de Israel, personagens que conheceram os maiores desastres precisamente quando seus sábios desígnios se ordenavam a estabelecer a paz e afirmar seus reinados. “Porque é ele quem surpreende aos sábios em sua sabedoria e transporta as montanhas sem que se apercebam disso”.[6] É preciso, pois, temer a Deus. Se falo estas coisas, não é porque creio que em elevadas cúpulas tenham necessidade de meus ensinamentos e advertências, mas não posso subtrair da minha Alemanha o serviço a que estou obrigado.

E com estas palavras me recomendo a vossa serena majestade e a vossos senhores, suplicando humildemente que não permitam que as paixões de meus adversários me façam injustamente detestável diante de vós.

Eu disse.

(Depois que eu falei desta forma, o arauto imperial me quis repreender com dureza. Disse que não me havia inserido no assunto e que não era possível voltar a discutir ponto que já haviam sido condenados e definidos pelos concílios. Me obrigou então uma resposta simples e sem sutilezas; “Queria retratar-me ou não?” Tenho aqui o que então respondi).

Posto que vossa graciosa majestade e vossos senhores me pedem uma resposta, então a darei “sem chifres ou dentes”:[7] A menos que se me convença por testemunho da Escritura ou por razões evidentes – posto que não creio no papa nem nos concílios somente, já que está claro que eles tem se equivocado com frequência e tem se contradito entre eles mesmos -, estou acorrentado pelos textos escriturísticos que tenho citado e minha consciência é uma escrava da palavra de Deus. Não posso nem quero retratar-me em nada, porque não é seguro nem honesto atuar contra a própria consciência. Que Deus me ajude. Amém.[8]


NOTAS:
[1] A bula Exsurge, Domine (15 de junho 1520), que condenava 41 pontos da doutrina de Lutero. Mesclando capítulos heréticos com os que não eram, escrita por inspiração de inimigos de Lutero, não duvidemos que no documento escapa a condenação da tese básica da justificação pela fé somente.
[2] Se refere ao Decreto de Graciano (século XII), praticamente o corpo jurídico da igreja durante muito tempo.
[3] João 18, 23.
[4] Mt 10, 34 ss.
[5] A coroação imperial de Carlos V havia tido lugar em Aquisgrán meio ano antes, 23 de outubro de 1520.
[6] Jó 5, 13; 9, 5.
[7] “Sem chifres ou dentes”: coro escolástico para expressar uma sentença clara, simples e com um só sentido.
[8] A conclusão do histórico discurso de Lutero tem desencadeado discussões incontáveis. Até mesmo a edição de Weimar termina com as frases: “Ich kann nicht anders, hier stehe ich. Gott helfe mir, amen” (Não posso atuar de outra maneira, aqui estou. Que Deus me ajude, amém). Hoje se admite como a única versão autêntica a usada em nosso texto, muito mais provável e em conformidade com os testemunhos, mesmo que o atemorizado Lutero despoje algo de seu caráter de herói e de mártir. O acréscimo apócrifo, que não recolhem os testemunhos oculares, nem sequer Cochleo, começou pronto a executar como pronunciado por Lutero desde a edição do texto (em latim e alemão) por Gruneberg, Wittenberg. Já insistiu nele K. Muller, Luthers Schlusswort in Worms 1521, em Philotesia. Festschrift fur P. Kleinert, Berlin 1907, 269-289.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 171-175.

Traduzido em 16 de Fevereiro de 2014.
Rev. Evanderson Henrique da Cunha, M.Div.
Coordenador do Seminário Presbiteriano Brasil Central - Extensão Rondônia
Professor do Departamento Teologia Pastoral

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