A Spalatino. 14 de Maio de 1521[1]
Ao seu caríssimo e fidelíssimo servo em Cristo, George Spalatino, em Altenburg.
Jesus. Saudações. Recebi a sua carta, assim como as de Gerbel e Sapido, na domínica Exaudi, querido Spalatino. Atrasei deliberadamente a contestação para que o ruído recente de meu cativeiro não desse motivo para que alguém interceptasse as cartas. Por aqui correm muitos rumores sobre mim; não obstante, prevalece a opinião de que fui capturado por amigos enviados da Franconia. Amanhã expira o prazo do salvo-conduto imperial.[2] Causa-me dor o que me disse do rigorosíssimo edito que dará motivo para violentar até as consciências[3]; e não é algo que dói por mim, mas porque sua imprudência acabará arrojando todo o mal sobre suas cabeças e porque estão incitando cada vez mais ódio. Quanto ódio suscitará está vergonhosa violência! Mas deixe-o; possivelmente esteja chegando o tempo de sua visitação.[4]
Continuo sem notícias acerca dos nossos de Wittenberg e dos demais lugares. Enquanto íamos a Eisenach a juventude de Erfurt assaltou durante a noite as casas de alguns sacerdotes; estava indignado porque o decano de são Severino, grande papista, agarrando-os pela gola das vestes, expulsou publicamente do coro o mestre Drach, sob o pretexto de que estava excomungado, pela simples razão de que, junto conosco, saiu para me receber quando cheguei a Erfurt. Entretanto, aguardam que outras coisas aconteçam. O conselho anda dissimulando; os sacerdotes não tendo boa reputação ali, e dizem que a juventude artesã anda conspirando com os estudantes. Possivelmente está próximo o cumprimento do provérbio “Erfordia Praga”.[5]
Contaram-me ontem que em Gotha, certo sacerdote foi mal recebido porque havia comprado não sei o que para incrementar os ingressos da igreja e, com a desculpa de isenção eclesiástica, negou-se pagar os impostos e tributos. Podemos perceber que o povo não pode nem quer continuar aguentando o jugo papista, como disse Erasmo em sua Boulé.[6] Não cessamos de urgi-lo e dar-lhe importância, porque, graças a luz reveladora de tudo, temos prescindido da fama, da opinião, e aquele tipo de piedade não vale, nem reina, como não reinou até agora. Veremos se de agora em diante, oprimindo e aumentando tudo como até este momento fizeram.
Da minha parte aqui estou todos os dias sentado, ocioso e crapuloso. Estou lendo a Bíblia em hebraico e grego. Vou escrever um sermão em alemão sobre a liberdade da confissão auricular, continuarei com os Salmos e os comentários, desde que receba de Wittenberg algumas coisas necessárias, entre as quais se encontra o Magnificat que comecei.
Você não faz ideia da amabilidade com o que o abade de Hersfeld nos acolheu.[7] Ele fez com que o seu chanceler e seu tesoureiro saíssem ao nosso encontro a uma légua de larga distância; depois, o mesmo com muitos cavaleiros nos recebeu à entrada de seu castelo e nos acompanhou até a cidade. Nela fomos recebidos pelo conselho. Descansamos em seu monastério e me alojou em seu próprio quarto. Obrigaram-me a pregar um sermão às cinco da manhã, apesar de que lhes adverti que se expunham a perder os seus benefícios, se a notícia chegasse aos imperiais, que o interpretariam como uma violação da promessa dada ao mandato de não pregar em meu itinerário. Entretanto, disse-lhes que não havia consentido em que se atasse a Palavra de Deus, como era a verdade. Também preguei em Eisenach apesar do protesto do acovardado pároco ante o notário e testemunhas presentes, alegando com humildade de ser necessário a isto, por medo de seus tiranos. Talvez em Worms digam que com isto violei a promessa, mas não foi assim, porque não dependia de minha condição de atar a Palavra de Deus, nem prometi isto; e ainda, de ir contra Deus, e muito menos poderia observá-lo ainda que houvesse prometido. Ao dia seguinte nos acompanhou até a selva e havendo o seu chanceler se unido a nós, nos ofereceu comida a todos em Berka. Por fim, e depois de partir todo este acompanhamento com Jerônimo, entramos pela tarde em Eisenach e fomos recebidos pelos cidadãos do local que a pé, saíram ao nosso encontro.
Através da selva fui visitar aos meus parentes que estão espalhados por quase toda a região. Despedi-me deles, e quando nos dirigíamos a Walterhausen, um pouco além das proximidades de Altenstein, fui capturado. Amsdorf[8] estava forçosamente informado de que alguém planejava sequestrar-me, mas ignora o lugar de meu cativeiro. O irmão que ia comigo[9] ao perceber a tempo os cavaleiros, saltou do carro e dizem que chegou a pé, pela tarde, em Walterhausen, sem que ninguém lhe saudasse.
Aqui em encontro, despojado de meu hábito, disfarçado de cavaleiro, com barba e cabelos longos. Seria difícil para você me reconhecer, porque há muito tempo que nem eu mesmo me conheço. Atuo com liberdade cristã, livre de todas as leis desse tirano, se bem que é verdade que eu gostaria que o porco de Dresden[10] se dignasse em matar-me por pregar em público, se é que Deus lhe agrada que padeça por sua Palavra.
Adeus e rogue por mim. Saudações a toda a tua corte.
No Monte, terça-feira da domínica Exaudi, 1521.
Martinus Luterus.
NOTAS:
[1] WA Br 2, pp. 337-338. Incluímos esta carta por expressar e recompor o retorno de Lutero de Worms e os sentimentos que o animam em seu retiro forçado em Wartburg, onde disfarçado passaria 300 dias e conhecido pelo “cavaleiro George”.
[2] Refere-se ao salvo-conduto expedido por Carlos V, no dia 25 de Abril e válido por 21 dias.
[3] O edito imperial de proscrição com todos os efeitos conseguintes (qualquer um poderia atentar com toda tranquilidade contra a vida do proscrito), estava redigido, ainda que tardaria algo em promulgar-se. Este é o motivo de que toda a vida posterior de Lutero transcorra na Saxônia.
[4] Jr 46:21.
[5] Reproduz um provérbio popular que fazia referência aos sucessos que em 1409 registra-se ocorrem na cidade de Praga. O rei da Bohemia reformou o estudo e concedeu a independência a “nação” Tcheca, em prejuízo da Alemanha, que era quem a dominava naqueles dias de Huss. Os alemães, em parte, recorreram a Erfurt, primeira universidade de Lutero.
[6] Consilium cuiusdam exa animo cupientis que apareceu entre 1520-1521, que literalmente diz citado por Lutero, e que certamente não era de paternidade erasmiana.
[7] Era abade do monastério de Hersfeld naquelas circunstâncias Kraft Myle.
[8] Nicolas de Amsdorf (1483-1565), professor de Wittenberg, companheiro de Lutero e um de seus mais próximos amigos e colaboradores. Se tornaria no representante da ortodoxia luterana contra os “desvios” irenistas e sinergistas de Melanchthon e do “luteranismo”. Consagrado bispo de Naumburg por Lutero (1542). Cf. P. Brunner, Nikolaus von Amsdorf als Bischof von Naumburg, Gütersloh 1961.
[9] O irmãos agostiniano J. Petzensteiner, companheiro com Amsdorf deste velhor regresso de Worms e testemunha do sequestro simulado. Cf. M. Simon, Johannes Petzensteiner, Luthers Reisebegleiter in Worms: Zeitschrift für bayerische Kirchengeschichte 35 (1966), pp. 113-137.
[10] O duque George da Saxônia.
Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp.383-385.
Tradução com introdução e notas em 12 de Abril de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.
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