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terça-feira, 28 de agosto de 2018

Carta de Martinho Lutero para George Spalatino [19 de Outubro de 1516]

19 de Outubro de 1516.


A George Spalatino, servo de Cristo e sacerdote do Senhor, mestre eruditíssimo, seu amigo sincero e íntegro irmão.

Jesus. Saudações. O que me estranha no eruditíssimo Erasmo, querido Spalatino, é o seguinte: que ao interpretar o apóstolo, entenda a justiça das obras, da lei ou própria (que assim a chama o apóstolo) como a observância das práticas cerimoniais, e defenda, além disso, que no capítulo quinto dos Romanos, o apóstolo não quis fazer referência ao pecado original (que ele, por outra parte, admite). Se lesse os livros que Agostinho escreveu Contra os pelagianos e, em especial, Do espírito e da letra, Do mérito e remissão dos pecados, Contra duas cartas dos pelagianos e Contra Juliano, inclusos quase em totalidade no volume oitavo de suas Obras, perceberia que não fala pessoalmente, senão apoiado nos pais de tanta importância como Cipriano, Nazianzeno, Rético, Irineu, Hilário, Olímpio, Inocêncio e Ambrósio. Se o fizesse, entenderia corretamente ao apóstolo e teria a Agostinho em maior apreço do que até agora tem professado.

Tenho certeza de que meu dissentimento com Erasmo procede do momento de interpretar as Escrituras Sagradas. Pois prefiro seguir a Agostinho do que a Jerônimo, na mesma medida em que ele prefere a Jerônimo do que a Agostinho. Não é que me deixe levar por predileções de minha confissão religiosa, quando intento revalidar a Agostinho; é que me dou conta de que são Jerônimo busca deliberadamente o sentido histórico e, o mais admirável, que interprete muito melhor as Escrituras quando o faz de modo acidental (por exemplo nas Cartas) do que quando o intenciona fazer exaustivamente como nos Opúsculos.

A justiça da lei ou das obras não se encontra somente nas práticas, mas também, e mais exatamente, nas obras de todo o decálogo; porque se observam fora da fé em Cristo, ainda que sejam capazes de fabricar Fabrícios, Régulos e homens integérrimos, saberão tanto de justiça como um arbusto sabe de figos. Como opina Aristóteles, não é realizando coisas justas como que nos justificamos, a não ser que se trate de uma simulação, mas que nos justificamos (por assim dizer), sendo justos é como realizaremos na justiça. É necessário que transforme primeiro a pessoa e depois se transformarão as obras. Agrada-se de Abel, antes que a sua oferta. Mas deixemos isto para outra ocasião.

Rogo-te que te portes como amigo e cristão, e faças saber isto a Erasmo. Porque o mesmo que espero e desejo que sua autoridade chegue a ser celebérrima, temo que muitos se escudem em seu patrocínio para defender a interpretação literal, ou seja, morta, da que estão repletos os Comentários de Lira e quase todos os que foram escritos posteriores a Agostinho. Até o próprio Estapulense, meu Deus, tão espiritual e tão sincero por outra parte, lhe falta na interpretação da Escritura Sagrada esta inteligência que está tão presente em sua vida e em seus conselhos.
Acreditarás que estou temeroso ao ver que passou sob a vara de Aristarco a homens tão eminentes, mas hás de saber que o faço por causa teológica, e pela salvação dos irmãos.

Adeus meu querido Spalatino, e rogue por mim. Escrevo-te a apressadamente, do recôndito de nosso monastério.

O dia seguinte à festa de são Lucas. 1516. Fr. Martinus Luther, agostiniano.


NOTAS:
[1] WA Br1, pp. 70-71. Spalatino (Georg Burckardt, de Spalt), da mesma geração que Lutero, ele viveu entre 1484-1545, exerceu um papel decisivo nos começos da Reforma, dada a sua posição na corte de Frederico, o Sábio, da Saxônia, de quem era chanceler e pregador. Foi o mediador entre o príncipe e Lutero, humanista, e quem soube frear certas destemperanças do reformador que lhe escreveu um numeroso corpo de cartas. Cf. 1. Hüss, Georg Spalatin, Weimar 1956; Id., Georg Spalatins Verháltnis zu Luther und der Reformation: Luther 31 (1960), pp. 67-80.
[2] Refere-se à edição das obras de Agostinho publicadas em Basiléia no ano de 1506.
[3] Sobre o apreço de Erasmo por Jerônimo, em coincidência com as predileções de todos os humanistas, cf. sua própria confissão a Leão X, em 1515 (Opus epistolarum D. Erasmi 11, ed. P.S. Allen, Oxford 1906, p. 80 e 220).
[4] Spalatino também era um mediador entre os humanistas e Lutero, cumpriu fielmente o encargo e na carta que escreveu a Erasmo lhe repete estes conceitos (cf. Opus epistolarum, 417).
[5] Refere-se a Nicolás de Lira (1270-1340) que no início do século XIV escreveu Postillae perpetue in vetus et novum testamentum com grande aceitação e impresso em 1471-1472.
[6] Lefévre d’Etaples (m. em 1536), patriarca do círculo humanista e reformista de Meaux, com algumas ideias próximas de Lutero. Continuou fiel à Igreja de Roma, mas alguns de seu intimidade (Farel, por exemplo) se tornaram em líderes fervorosos da Reforma protestante. Cf. F. Hahn. Faher Stapulensis und Luther: Zeitschrift für Kirchengeschitchte 57 (1938), pp. 356-432.
[7] Aristarco de Samotracia, gramático do século III a.C., que para Lutero, Erasmo e os humanistas era o símbolo das atitudes críticas.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Acerca do Magistrado Civil - Philip Melanchthon

Eu considero muito importante esta seção sobre magistrados. Por enquanto, devo seguir a divisão popular por razões pedagógicas. Alguns magistrados são civis e outros eclesiásticos. O magistrado civil é aquele que porta a espada e vela pela paz civil. Paulo aprova isso em Rm 13. As questões sob a espada são direitos civis, ordenanças civis dos tribunais públicos e penalidades para criminosos. É obrigação da espada fazer cumprir as leis contra assassinato, vingança, etc. Portanto, o fato de que o magistrado exerce a espada é agradável a Deus. O mesmo pode ser dito aos advogados se eles distorcem a lei ou defendem os oprimidos, mesmo que os litigantes cometam grandes pecados. Ao empunhar o poder da espada, tenho isso a dizer. Em primeiro lugar, se os governantes ordenarem qualquer coisa contrária a Deus, não devem ser obedecidos. Em 5.29: “Devemos obedecer a Deus e não aos homens”. Você tem inúmeras declarações deste princípio, especialmente aquele muito bom em Am 7.10-17.

No próximo lugar, se eles mandarem qualquer coisa que seja para o bem público, devemos obedecê-los de acordo com Rm 13.5: “Portanto, deve-se sujeitar, não só para evitar a ira de Deus, mas também por causa da consciência”. Porque o amor nos obriga a cumprir todas as obrigações civis. Finalmente, se alguma coisa é comandada com capricho tirânico, devemos suportar essa magistratura também por causa do amor, já que nada pode ser mudado sem uma revolta ou sedição pública. Pertinente é a palavra de Cristo: “Mas se alguém te atingir na face direita, volte-se para o outro também” (Mt 5.39). Mas se você pode escapar sem ofensa e perturbação pública, faça isso. Por exemplo, se você foi injustamente jogado na prisão e pode fugir sem perturbações públicas, nada proíbe sua fuga de acordo com 1 Co 7.21: “Mas se você pode ganhar sua liberdade, aproveite a oportunidade”. No que diz respeito aos magistrados eclesiásticos, primeiro, pensamos que os bispos são servos e não potestades ou magistrados. Em segundo lugar, os bispos não têm o direito de estabelecer leis, uma vez que foram ordenados a pregar apenas a Palavra de Deus, e não a dos homens, como dissemos acima. Isso parece suficientemente claro a partir de Jr 23.

1. Portanto, em primeiro lugar, se eles ensinam as Escrituras, devem ser ouvidos como se o próprio Cristo falasse. Lc 10.16 traz isto: “Aquele que te ouvir, ouça-me”. Isso se refere à Escritura, não às tradições humanas, como é evidente quando ele diz em Mt 10.41: “Aquele que recebe um profeta porque é profeta ...”; ele não diz aqui “pseudoprofeta”.

2. Em segundo lugar, se eles ensinam algo contrário às Escrituras, não devem ser ouvidos. Lemos em At 5.29: “Devemos obedecer a Deus e não aos homens”. Mt 15.6: “Então, por causa da sua tradição, você anulou a palavra de Deus”. Naqueles dias, o Papa decretou algo contrário à justiça divina, quando emitiu a bula em que Lutero foi condenado; nisto ele não deve ser obedecido.

3. Em terceiro lugar, se eles decretarem qualquer coisa que vá além das Escrituras para subjugar as consciências, não devem ser ouvidos. Pois nada além da lei divina obriga a consciência. Paulo estava falando sobre isso em 1 Tm 4.1ss., onde ele chama a lei do celibato e de alimentos proibidos "doutrinas dos demônios". Ele faz isso, embora essas coisas não parecem contradizer as Escrituras e, embora pareçam ser coisas que, por si só, não são ruins. O celibato e o abster-se de carne não são coisas malignas em si mesmas. Mas essas regras são impiedosas se você acha que está cometendo pecado ao não obedecê-las. Aqueles que pensam que um homem está pecando, por não observarem as horas canônicas ou que comem carne no sexto ou sétimo dia, estão ensinando coisas impiedosas. Pois um bispo não pode obrigar uma consciência cristã. 2 Co 13.10: “Escrevo isso enquanto estou longe de vocês, para que, quando eu for, não precise ser severo no uso da autoridade que o Senhor me deu para construir e não para derrubar”.

4. Em quarto lugar, se você não quer sobrecarregar a consciência com a lei de um bispo, mas interpretar a sua exigência apenas como uma obrigação externa (como homens espirituais e aqueles que, geralmente, entendem que a consciência não pode ser vinculada por nenhuma lei humana), você considerará a lei de um bispo como estando pareada com a tirania de um magistrado civil. Assim qualquer que seja a exigência dos bispos que vá além da Escritura, é tirania, já que eles não têm o direito de ordenar. Você suportará esses fardos por causa do amor, de acordo com a passagem: “Mas se alguém te golpear a sua face direita, volte-se para o outro também” (Mt 5.39). Além disso, se você pode se opor sem ofensa, nada o proíbe. Por exemplo, se sem causar perturbação pública você puder sair da prisão na qual você está detido por um tirano, nada o impede, de acordo com 1 Co 7.21: “Mas se você pode ganhar a sua liberdade, aproveite a oportunidade”. E Cristo dispensou as tradições farisaicas em Mt 9 e 12, entretanto, ele não destruiu as leis civis. Agora que as leis farisaicas são dispensadas, somos mais livres, não só porque são uma imposição sobre cada indivíduo com estes que são fardos comuns, mas também, porque eles facilmente obrigam a consciência. A regra e direção de todas as leis humanas estão sob a fé e o amor, e especialmente sob a necessidade. A necessidade libera de todas as tradições se, em qualquer ponto, a alma ou a vida do corpo caíram em perigo através da tradição.

Extraído de Philip Melanchthon, Loci Communes Theologici in: Willhelm Pauck, ed., Melanchthon and Bucer (Louisville, Westminster John Knox Press, 2006), pp. 148-150.
Traduzido por Rev. Ewerton B. Tokashiki

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A externa administração da igreja - Johannes Wollebius

(1)
1. Temos discutido a natureza da igreja. A sua administração será o próximo assunto.
2. Esta é tanto ordinária como extraordinária.
3. A administração ordinária é tanto pública como privada.
4. A administração pública é tanto eclesiástica como civil.
5. A administração eclesiástica é aquela que lida com assuntos espirituais.
6. Alguns de seus assuntos estão restritos àqueles que detém o ofício na igreja [personae in eclesia publicae]; e alguns outros são compartilhados por toda a congregação [coetus].
7. O que é restrito são as coisas que são realizadas por alguns ministros da igreja em razão de seu chamado.
8. Os ministros da igreja são as pessoas que Deus colocou como autoridade na igreja.[1]

PROPOSIÇÕES
I. Ninguém pode ser posto como autoridade na igreja a menos que seja legitimamente chamado.
II. Ninguém pode ser forçado a exercer o ofício eclesiástico.
III. O casamento não é proibido aos ministros. 1 Co 9:5 “não temos o direito de sermos acompanhados por uma irmã como esposa,[2] como os outros apóstolos e o irmão do Senhor, e Cefas?”; 1 Tm 3:2 “o bispo precisa ser irrepreensível, marido de uma esposa”; 1 Tm 3:4 “que governe bem a própria casa, criando os filhos submissos e respeitosos cada todas as coisas”.

(2)
1. Os ministros são tanto extraordinários como ordinários.
2. Os ministros extraordinários eram aqueles homens que Deus levantou para estabelecer um novo regime na igreja, ou para restaurar o antigo naquilo que ela tinha falhado. Assim, sob o Antigo Testamento, eram os profetas. No tempo do Novo Testamento temos João Batista, Cristo, os apóstolos, os profetas (i.e., homens com dom de interpretação Escritura), os evangelistas que acompanhavam e assistentes dos apóstolos, os pastores das igrejas e os mestres encarregados das escolas (Ef 4:11) [eram ministros extraordinários].

PROPOSIÇÕES
I. As marcas do ministro extraordinário eram os dons extraordinários.
II. Estes eram os dons de profecia, línguas e milagres.
III. Estes dons extraordinários antigamente abundavam sempre que a vontade de Deus, ou a necessidade da igreja os exigia, e depois eram retirados, e o ministério ordinário continua.
3. Os ministros ordinários são aqueles que são providos e chamados pelos meios ordinários.
4. Eles são tanto pastores, mestres, presbíteros [presbyteri] e diáconos.
5. Os pastores são aqueles que supervisionam uma particular congregação, para pregar, administrar os sacramentos e cuidar do rebanho.

PROPOSIÇÕES
I. O título de bispo pertence a todos os pastores (1 Tm 3:1).
II. Embora se desenvolveu o costume na igreja, que quem preside uma diocese de igrejas locais é chamado de bispo, o título de bispo universal não se deve conceder a ninguém.
6. Os mestres são aqueles que percebem a verdadeira doutrina, ensinando-a aos jovens nas escolas, bem como, fazem com que prevaleça na igreja.

PROPOSIÇÕES
Entre os pastores e mestres há estas diferenças: pastores são líderes nas igrejas, enquanto os mestres das escolas; pastores são pessoalmente dedicados a mover [a vontade] de seus ouvintes, enquanto que os mestres fazem instruindo-os.[3]
7. Os presbíteros são homens honestos e piedosos, assistentes [adiuncti] dos pastores, que servem em assuntos que afetam o bem-estar da igreja, em visitar o rebanho, tomando nota das irregularidades na vida e coisas similares.
8. Aqueles usos para diáconos e diaconisas[4] se referiam a quem eram confiáveis para receber e distribuir a propriedade eclesiástica (At 6:1-6; 1 Tm 3:8-10).[5]

[ TEXTO COMPLETO ACESSE AQUI ]

NOTAS:
[1] Alexander Ross traduz: “Os ministros são aqueles que Deus comissionou para conduzir o seu rebanho” in: The Abridgment of Christian Divinity, p. 214. Nota de Ewerton B. Tokashiki.
[2] Soror uxor, com Beza. Veja comentários. Nota de John W. Beardslee III.
[3] Alexander Ross traduz: “Pastores diferem dos doutores, que nisto eles têm a condução da igreja, e estes da escola; aqueles movem as afeições, e estes informam o entendimento do seu auditório”. The Abridgment of Christian Divinity, p. 217. Nota de Ewerton B. Tokashiki.
[4] O texto latino: “Diaconi & diaconisse olim erant, quibus bona Eclesiastica coligenda & distribuenda concredita erant” [Os diáconos e diaconisas que por sua vez faziam a coleta e distribuição dos bens eclesiásticos que lhes foram confiados] in: Joanne Wollebio, Compendium Theologicae Christianae (Amsterdami, Apud Aegidum Janssonium Valckenier, 1655), p. 154. Alexander Ross traduz: “Diáconos e diaconisas, na antiguidade, eram eles que faziam a coleta e a distribuição dos bens da igreja” in: The Abridgment of Christian Divinity, p. 217. A tradição reformada ignora a existência de diaconisas, embora Wollebius faça menção a elas. A ordenação feminina é uma novidade entre igrejas presbiterianas e reformadas que aderiram ao liberalismo teológico no século XX. Nota de Ewerton B. Tokashiki.
[5] O título “diácono” permanece em muitas igrejas reformadas, mas não é universalmente usado. Nota de John W. Beardslee III.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Carta de Martinho Lutero a George Spalatino [1516]

19 de Outubro de 1516.[1]

A George Spalatino, servo de Cristo e sacerdote do Senhor, eruditíssimo mestre, seu amigo sincero e íntegro irmão.

Jesus. Saudações. O que me estranho no eruditíssimo Erasmo, querido Spalatino, é o seguinte: que ao interpretar o apóstolo entenda a justiça das obras, da lei ou própria (que assim a chama o apóstolo) como a observância das práticas cerimoniais e defenda, além disso, que no capítulo quinto aos Romanos, o apóstolo não intencionou referir-se ao pecado original (que ele, noutra parte, admite). Se ler os livros que Agostinho escreveu aos pelagianos, e em especial Do espírito e da letra, Do mérito e a remissão dos pecados, Contra as cartas dos pelagianos e Contra Juliano, inclusos em quase a sua totalidade no oitavo volume de suas Obras,[2] perceberia de que não fala a sua opinião pessoal, mas apoiado em pais de tanta importância como Cipriano, Nacianceno, Rético, Ireneu, Hilário, Olímpio, Inocêncio e Ambrósio. Se fizesse corretamente entender o que disse o apóstolo, teria em Agostinho um maior apreço do que até agora manifesta.

Estou certo de que meu dissentimento com Erasmo procede de que no momento de interpretar as Sagradas Escrituras prefiro seguir a Agostinho que a Jerônimo, na mesma medida em que ele prefere a Jerônimo que a Agostinho.[3] Não que eu me deixe levar por predileções de minha confissão religiosa quando intento revalidar a Santo Agostinho; é que percebo que São Jerônimo busca deliberadamente o sentido histórico e – o mais admirável – que interpreta muito melhor as Escrituras quando o faz de forma incidental (por exemplo, nas Cartas) do que quando o quer fazer exaustivamente, como nos Opúsculos.

A justiça da lei ou das obras não se encontra somente nas práticas, mas também, e mais exatamente, nas obras de todo o decálogo; porque se observar fora da fé em Cristo, ainda que sejam capazes de fabricar Fabrícios, Régulos e homens de integralíssimos, ainda assim saberiam tanto da justiça como a sorbus[4] sabe de figos. Discordando de Aristóteles, não é realizando coisas justas que nos justificamos – a não ser que se trate de uma simulação – mas que justificando-nos (por assim dizer) e, sendo justos é como realizaremos a justiça. É necessário que se transforme primeiro a pessoa e depois se transformarão as obras. Agrada Abel antes que sua oferta. Mas deixemos isto par outra ocasião.

Rogo-te que portes como amigo e cristão e faças saber isto a Erasmo.[5] Porque o mesmo que espero e desejo que sua autoridade chegue a ser celebérrima, temo que muitos se escudem em seu patrocínio para defender a interpretação literal, que equivale dizer morta, da que estão repletos os Comentários de Lira, e quase todos os posteriores a Agostinho.[6] Até mesmo Estapulense, meu Deus, tão espiritual e tão sincero por outra lado, na interpretação da Sagrada Escritura lhe falta inteligência que tem tão presente em sua vida e em seus conselhos.[7]

Terá um sentimento temerário ao ver que passo sob a vara de Aristarco[8] a homens tão eminentes, mas saberá que o faço pelo motivo teológico e pela salvação do irmãos.

Adeus, meu querido Spalatino, e rogue por mim. Escrevo para você às pressas, do interior de nosso monastério, no dia seguinte à festa de são Lucas. 1516.[9]

Fr. Martinus Luther, agostiniano.


NOTAS:
[1] WA Br 1, pp. 70-71. Spalatino (Georg Burckhardt, de Spalt) da mesma geração que Lutero. Ele viveu entre 1484-1545, realizou um papel decisivo no início da Reforma devido a sua posição na corte de Frederico, o Sábio da Saxônia, de quem era chanceler e pregador. Foi o mediador entre o príncipe e Lutero, que como humanista, soube frear certas exageros do reformador que escreveu um numeroso corpo de cartas. Cf. I. Hüss, Georg Spalatin, Weimar 1956; Id., Georg Spaltins Verhâltins zu Luther und der Reformation: Luther 31 (1960), pp. 67-80. Nota de Teófanes Egido.
[2] Se refere à edição das obras de São Agostinho de Basiléia, 1506. Nota de Teófanes Egido.
[3] Sobre o apreço de Erasmo com São Jerônimo – coincidentemente com as predileções de todos os humanistas – cf. sua própria confissão a Leão X, em 1515 (Opus epistolarum D. Erasmi II, edic. P.S. Allen, Oxford 1906, pp. 86 e 220). Nota de Teófanes Egido.
[4] É a planta que produz os frutos utilizados para fazer a vodca russa. Nota do tradutor.
[5] Spalatino também mediou entre os humanistas e Lutero, cumprindo fielmente o cargo e na carta que escreveu a Erasmo lhe repete estes conceitos (cf. Opus epistolarum, 417). Nota de Teófanes Egido.
[6] Refere-se a Nicolas Lira (1270-1340), que no início do século XIV escreveu Postillae perpetuae in vetus et novum testamentum, tendo grande aceitação e várias publicações em 1471-1472. Nota de Teófanes Egido.
[7] Lefévre d’Etaples (faleceu em 1536) foi patriarca do círculo humanista e reformista de Meaux, com algumas ideias semelhantes de Lutero. Continuou fiel à Igreja de Roma, mas alguns de seu circulo (por exemplo Farel) se tornariam em paladinos fervorosos da Reforma protestante. Cf. F. Hahn, Faber Stapulensis um Luther: Zeitschrift für Kirchengeschichite 57 (1938), pp. 356-432. Nota de Teófanes Egido.
[8] Aristarco de Samotracia foi gramático do século III, que para Lutero, Erasmo e os demais humanistas era o símbolo das atitudes críticas. Nota de Teófanes Egido.
[9]Teófanes Egido no prefácio da coletânea das “Cartas” de Lutero afirma que [nota do tradutor]:

Nem os escritos maiores, nem muitas vezes as suas obras ocasionais, são válidas para traçar os sentimentos, as reações, as preocupações profundas e as alegrias de Lutero. As cartas constituem o melhor instrumento para reconstruir a sua íntima biografia. Não apenas isso, como poderemos observar, pois algumas das cartas inclusas nesta edição são verdadeiramente programáticas ou possuem conteúdos básicos de sua teologia e do primeiro período da história do “protestantismo”.

O fato de que ser possível se reunir na edição crítica de Weimar o elevado número de aproximadamente 4500 cartas, indica o que na realidade deveria ser a atividade epistolar de Lutero, sendo que, forçosamente, as que se perderam são em número mais do que as coletadas nestes 14 volumes da citada edição.

Procuramos oferecer amostras de todos os tons, cartas onde pontifica, anatematiza, onde se humilha diante de Erasmo, ou esbraveja contra ele, nas que expõe as suas convicções, as suas misérias, o convite da festa de casamento, ou, na que salta de ternura diante do seu filho, as cheias de sentimento por sua Cate e as formosas antologias da série de Coburgo. Esperamos que o esforço de selecionar corresponda a nossa intencionalidade.

As edições das Cartas de Lutero que usamos de base foram as seguintes. As publicadas pela edição Walch (volume 21 da primeira, 21a e 21b da segunda) da metade do século XVIII. A coleção de M. de Vette – J.R. Seidemann, Luthers Briefe, Berlim 1825-1828, 1856. A mais completa de L. Enders – G. Kawerau, Dr. Martin Luthers Briefwechsel, Berlim, 19 volumes, Frankfurt-Stuttgart-Leipzig 1884-1907, 1932 (incorporadas na edição Erlangen). Todas as cartas consultadas foram revisadas à luz das informações da edição crítica de Weimar, Briefwechsel, 14 volumes, 1930-1970. Nos servimos também, para aclarar muitos detalhes, das correções de H. Rückert, Luthers Briefe, Berlim 1966 (volume 6 da edição de CI), assim como LW 48-50 e Lab 8.

Para evitar reiterações e facilitar as citações, somente ofereceremos a referência obrigada do lugar correspondente a cada carta na clássica e, por agora, definitiva edição Weimar.


Traduzido de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 373-374.

Tradução com introdução e notas em 20 de Fevereiro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

Oração de Philip Melanchthon

A ti, ó Filho de Deus, Restaurador da imagem desfigurada e deformada de Deus no homem, que morreste pelos nossos pecados e ressuscitaste par...