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quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Carta de Johannes Aecolampadius para Hulrich Zwingli

20 de agosto de 1531.[1] 

 Saudações. Eu li, mui querido irmão, a opinião que você expressou a respeito do caso do rei da Inglaterra, e eu prontamente concordo com ela, percebendo claramente com que julgamento imparcial você pesou todas as circunstâncias do caso; e, não tenho dúvidas de que o resultado deste esforço não será motivo de arrependimento. Agradeço, portanto, por isso. Ficarei com a cópia que você redigiu, a qual, entretanto, lhe será devolvida, se assim o desejar. Minha opinião em nada difere da sua, exceto na maneira de expressá-la: você deve ler por si mesmo, já que não é muito extensa, mas ela é quase como uma carta. Bucer e Capito, até agora, sustentaram pontos de vista diferentes dos nossos; mas espero que, ao lerem a sua opinião, não mais discordem de nós, embora estejam muito preconceituosos em favor de suas próprias opiniões, especialmente de uma delas, circunstância que ocasiona não pequenos inconvenientes para uma igreja tão diferente. Eles permitiriam que o rei tivesse duas esposas: mas, esteja longe de nós seguirmos a Maomé neste aspecto, em vez de Cristo. 

 Então, com respeito à reconciliação com os cinco cantões, gostaria de estar enganado; mas, embora algumas pessoas esperem isso, não tenho a menor esperança que ocorra, a menos que uma das partes se humilhe ou seja humilhada. Eu tinha escrito anteontem (e pretendia entregar esta carta ao seu mensageiro, mas não o encontrei) por desejo urgente de quem enviou a resposta do Conselho ao seu povo. Envio a carta, embora agora seja fora de época e supérflua; mas desejo que você seja informado da ansiedade de seu amigo, mesmo que seja inútil. Adeus, com sua esposa e irmãos.[2] 

Aecolampadius. 


 NOTAS: 
 [1] Rev. Hastings Robinson,Original Letters Relative to the English Reformation (Cambridge, The Cambridge University Press, 1847), pp. 551-552. 
 [2] Esta é a última carta de Aecolampadius para Zwingli, visto que o reformador suíço alemão falece em 10 de outubro de 1531. Nota do tradutor.

domingo, 29 de março de 2020

Fragmento do rascunho da Ordenança Eclesiástica sobre a “Propriedade do Matrimônio” por João Calvino

Além disso, caso contrário, não poderíamos levá-los a um acordo, ordenamos e pedimos antecipadamente e antes de tudo que façam um inventário de suas mercadorias e dos seus negócios, dívidas, títulos e tudo mais que depende disso, dos seus móveis, utensílios, bens comuns e bens adquiridos. Deixe que eles resolvam e fechem suas contas e, assim, providenciem entre eles que haja uma resolução definitiva, que ponham fim a todas as brigas anteriores e que, a partir de agora, cada um possa saber o que é seu para que não haja reclamação. E desejamos que isso seja feito o mais rápido possível, o mais tardar dentro de um ano, sem procedimentos formais, mas pacificamente e com boa vontade. Se uma das partes não quiser consentir, ou seja, fazer esse inventário e liquidar suas contas sem um processo ou ir a um tribunal, a outra parte terá a opção e a liberdade de renunciar ao presente contrato e retornando ao seu primeiro curso [de ação legal?].

Sendo assim, será nosso desejo que as duas partes vivam juntas, mantendo uma família comum como fizeram até agora, tanto para seu próprio contentamento e repouso, como para evitar as conversas fúteis do mundo e o escândalo que possa resultar de sua separação. No entanto, como não podemos fazê-los concordar com isso,[1] ordenamos que a separação seja realizada quando as contas forem concluídas, ou seja, dentro de um ano. Para que eles se separem e cada um se retire pacificamente,[2] sob pena de retornar à sua condição anterior, ou seja, cada um deles deve, respectivamente, continuar com os direitos e ações que tomou como se este presente acordo nunca fosse feito. No entanto, se acontecer posteriormente que, para a facilidade e conveniência das duas partes ou de uma delas, lhes pareça apropriado organizar e realizar uma separação, nós os deixamos livres para fazê-lo.[3]


NOTAS:
[1] Calvino primeiro escreveu: “No entanto, se isso não puder ser feito de outra maneira e ambas as partes preferirem viver separadamente, ou um dos dois desejar isso, solicitamos ... ”.
[2] O texto original: “eles são mutuamente obrigados a se separar, cada um a pedido do outro ... ”.
[3] O texto está em CO 10/1:143–44 sem data citado pelo livro de Philip L. Reynolds and John Witte, Jr., orgs., To Have and to Hold - Marrying and Its Documentation in Western Christendom, 400–1600 (Cambridge, Cambridge University Press, 2007), p. 478.

terça-feira, 28 de março de 2017

Carta de Lutero a Jerônimo Baumgartner [1524]

Ao jovem Jerônimo Baumgartner, de Nürnberg, piedosíssimo e erudíssimo, mui querido em Cristo.[1]

Graça e paz no Senhor.

Também me vejo carecendo de acudí-lo, meu Jerônimo, no socorro da multidão dos pobres. Este jovem chamado Gregório Keser solicita a manutenção num lugar qualquer, e me pediu que lhe recomende alguma pessoa de Nürnberg. Poucas esperanças lhe dei, pois sei que todos estão ocupados; não obstante, lhe enviei em nome de Deus “que alimenta até aos corvos”.[2]

Além do mais, se quiser ficar com tua Kathe Bora, se antecipe antes de que seja entregue a outro que anda interessado nela.[3] Ela continua preferindo a você. Da minha parte, gostaria que casassem.
Adeus.

Wittenberg, 12 de Outubro de 1524.


NOTAS:
[1] WA Br 3, pp. 357-358. Sobre este primeiro pretendente de Catarina von Bora, e na certeza da indicação, conferir E. Kroker, Katharina von Bora, Martin Luther Frau (Berlin, 1959), p. 56ss
[2] Lc 12:24.
[3] Este terceiro na concorrência por Catarina, ao parecer muito cobiçada, foi Gaspar Glatius, pregador de Orlamünde (Conferir. H. Boehmer, em Luther Jahrbuch 7 [1925], p. 58ss).

Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 398-399.

Tradução em 26 de Março de 2017.
Rev. Ewerton B. Tokashiki

quinta-feira, 12 de março de 2015

Carta de Martinho Lutero a Alberto de Maguncia [1521]

A Alberto de Maguncia. 1 de Dezembro de 1521.[1]

Antes de tudo, meu humilde serviço a vossa graça eleitoral, mui respeitado e gracioso Senhor.

V.G.E. recordará mui bem que lhe escrevi duas vezes em latim: a primeira no começo das enganosas indulgências que se publicaram com o nome de V.G.E.,[2] advertindo-o fielmente que por amor aos cristãos opinei acerca dos libertinos, sedutores e avarentos pregadores, assim como acerca dos livros heréticos e supersticiosos. Ainda que – modéstia a parte – pudesse dirigir toda a tormenta contra V.G.E. – pois tudo estava manipulado sob o seu nome e sua ciência impressos nos livros heréticos -, todavia, por respeito a V.G.E., e a cada dos Brandeburg, e porque pensei que V.G.E. o fazia por ignorância e inexperiência, seduzido por outros inspiradores, me limitei lançar contra estes, bem sabe V.G.E. e quanta pena e com quanto risco. Minha leal advertência, todavia, em lugar de agradecimento se fez merecedora não somente de zombaria, e por parte de V.G.E. também de ingratidão.

Escrevi-lhe pela segunda vez com toda humildade[3] oferecendo-me a deixar-me instruir por V.E.G.. Então, recebi uma resposta dura, desatenta, indigna de um bispo e de um cristão que remetia a minha causa a um poder superior. Posto que ambos escritos para nada serviram, não desistirei, e, seguindo o evangelho, faço uma terceira correção em alemão, pois se algo pode ajudar estas supérfluas e não obrigadas advertências lamentosas.

V.G.E. erigiu novamente em Halle[5] o ídolo que rouba o dinheiro e a alma dos pobres e incautos cristãos. Com isto, se faz público que todas as torpezas que sucederam com Tetzel não foram somente obra sua, senão que se devera à petulância do bispo de Maguncia, que, ignorando a minha advertência, se fez o único responsável por tudo. Talvez, pense V.G.E. que estou fora do combate, que busco minha segurança e que a majestade imperial liquidou o monge. Não me importo com isso, mas saberá V.G.E. que estou decidido fazer o que a caridade cristã exige, sem que me possam atrapalhar as portas do inferno, por não dizer os incultos ignorantes [6], os papas, cardeais e bispos. Não posso suportar, nem calar, que o bispo de Maguncia pretenda dar a entender que não sabe o que não lhe concerne oferecer o ensino conveniente, quando um pobre monge exige, mas que faz bem quando isto envolve dinheiro. Comigo não cabem tais brincadeiras, e há de usar outro tom quando isto se diz ou se ouve.

Portanto, suplico com toda humildade a V.G.E. se digne deixar de enganar e roubar ao pobre povo, e que se mostre como um bispo, e não como um lobo. É demasiadamente público que as indulgências são uma descarada patifaria e uma farsa, que é Cristo quem unicamente deve ser pregado ao povo, e que V.G.E. não pode esconder-se na ignorância como desculpa para o seu pecado.

Recorde de como tudo começou; quão terrível incêndio se desencadeou por causa de uma insignificante e depreciada centelha, quando o mundo inteiro estava tão seguro de que um pobre mendicante não significava nada comparado ao papa e que havia lançado a uma empreita terrível. Apesar de tudo isso, Deus pronunciou o seu veredito: muito deu o que fazer ao papa e a todos os seus partidários, e, contra a opinião do mundo inteiro, as coisas foram tão longe, que lhe resultaria muito difícil ao papa restabelecer a antiga situação; lhe irá de mal a pior, de maneira que, pode-se concluir que esta é uma obra de Deus. Porque ninguém pode por em dúvida que Deus vive ainda e que sabe bem a maneira de resistir a um cardeal de Maguncia ainda que lhe assistam quatro imperadores; também gosta de abater os cedros elevados[7] e de humilhar aos endurecidos faraós. Suplico a V.G.E. que não lhe tente, nem lhe menospreze, porque a sua ciência e o seu poder não conhece limites.

Não se contente V.G.E. em pensar que Lutero esteja morto; apoiado em Deus, humilhando ao papa, golpeará tão livre e satisfatoriamente, se envolverá com o cardeal de Maguncia num duelo, cujo alcance não poderá nem sequer suspeitar. Unam-se entre vocês, queridos bispos, podem continuar sendo senhores feudais, que a este espírito não podem calar, nem ensurdecer. Quero que estejam de sobreaviso do ultraje que dessa atitude os sobrevirá e que agora não podem sequer imaginar.

Portanto, V.G.E. esteja avisado pela última vez e por escrito: se esse ídolo não for derrubado, terei um motivo necessário, urgente e inevitável pela doutrina divina e a salvação dos cristãos, para atentar publicamente contra V.G.E. bem como contra o papa, para protestar animoso contra o tal abuso, para fazer que recaiam sobre o bispo de Maguncia todas as abominações anteriores de Tetzel, e de mostrar o mundo inteiro a diferença que há entre um bispo e um lobo. Pode a V.G.E. aonde deve ir e o que há de fazer.

Por que me rotula de maledicente? Pois outro deseja que maldiga a quem me depreciou, como disse Isaías[8]. Já avisei suficientemente a V.G.E., chegou o tempo, segundo ensina Paulo,[9] de desonrar diante todo o mundo aos malfeitos públicos, de ridicularizá-los e castiga-los para que tal escândalo se desterre do reino de Deus.

Além do mais, rogo a V.G.E. se digne deixar tranquilos aos sacerdotes que, por fugir da lascívia, contraíram matrimônio, ou desejam contrair. Não lhe roube o que Deus lhes deu, posto que V.G.E. não pode apresentar razão, fundamento, nem direito algum, e além do mais, porque este petulante desaforo não rima com um bispo.

De que lhe serve, os bispos, recorrer tão insolentemente à violência, carregar com amargura os corações, e não querer justificar as suas ações? O que se passa em seus pensamentos? Por que se tornaram em soberbos gigantes, em Ninrodes da Babilônia? E por que ignoram os pobres, que o crime, a tirania, ainda que encobertos, mas que fazem perder a oração comum, poderia subsistir ainda longo tempo? Por que correm tão presunçosos como os insensatos, para que a desgraça que os faça chegar tão rápido?

Fixe-se bem V.G.E.: se isto não for lançado por terra, do evangelho emergirá um grito que diga o bem que fariam os bispos tirando a viga de seus olhos[10] e que melhor que andar separando as piedosas esposas de seus maridos seria melhor afastá-las de seus amantes.

Rogo, V.G.E., que por ti mesmo me dê o prazer e a oportunidade de calar. Não encontro prazer nenhum em publicar a sua vergonha e desonra. Mas, enquanto não se deixar de envergonhar diante de Deus e de desonrar a sua verdade, eu e todos os cristãos estamos obrigados de manter a glória de Deus, ainda que o mundo inteiro – não falo de um pobre homem como um cardeal – resulte por isso desonrado. Não calarei e ainda que fracasse, tenho a esperança de que os bispos, não acabarão de cantar alegremente o seu soneto. Não, não conseguiram exterminar a todos os que Cristo suscitou contra a sua sacrílega tirania.

Portanto, suplico e espero que V.G.E. dê uma pronta e satisfatória resposta no término de duas semanas. E se não chegar essa resposta pública, aos quatorze dias justos soltarei o meu folheto Contra o ídolo de Halle. Não me deterei ainda que esta carta seja interceptada por seus conselheiros: os conselheiros estejam para tais leais, e um bispo tem a obrigação de ordenar a sua corte de forma que lhe chegue quanto tenha que vir-lhe.

Que Deus conceda a V.G.E. a graça de um sentir e querer justos.

Em meu deserto, Domingo após santa Catarina, 1521.

De V.G.E. servo e súdito, Martin Luther.[11]


NOTAS:
[1] WA Br 2, 406-408.
[2] Em 31 de Outubro de 1517, uma data decisiva para a ruptura de Lutero por causa do conflito das indulgências.
[3] Em 4 de Fevereiro de 1520 (WA Br 2, 27ss).
[4] Mt 18:15-17.
[5] Cf. carta 11, nota 2.
[6] Refere-se aos escolásticos, aos professores de Lovaina, Paris, Leipzig, etc., um dos temores de Lutero.
[7] Is 2:13.
[8] Is 33:1.
[9] 1 Co 5:11-13.
[10] Mt 7:5.
[11] A resposta do arcebispo, complacente, datada em 21 Dezembro de 1521, cf. WA Br 2, 420.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 392-394.
Traduzido em 12 de Março de 2015.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

domingo, 7 de setembro de 2014

Carta de Martinho Lutero a Felipe Melanchthon [1521]

A Melanchthon

1 de Agosto de 1521[1]

Você não terminou de dar razões suficientes para medir com a mesma norma o voto dos sacerdotes e dos freis. A mim o que mais me convence é que a ordem sacerdotal foi estabelecida como livre por Deus; mas, não foi assim com os monges que espontaneamente escolheram e ofereceram o seu estado a Deus. Quase me atreveria a decidir que quem ingressou nestes compromissos antes de sua puberdade que podem sair dela sem escrúpulo, se não fosse porque ainda não me atrevo a sentenciar nada acerca dos que são velhos e viveram durante longo tempo neste estado.

Mesmo porque, Paulo afirma com toda liberdade que foram os demônios quem vedaram o matrimônio aos sacerdotes;[2] assim, como a voz de Paulo é a voz de Deus, não há dúvida de que há que confiarmos nela, de forma que ainda que houvessem pactuado esta proibição diabólica desde o princípio, agora, quando são conscientes de a quem prometeram, há que romper confiadamente o pacto.

Esta proibição do diabo expressada claramente na Sagrada Escritura me obriga e força a aprovar o realizado pelo bispo cameracense.[3] Deus não engana, nem mente ao dizer que esta é uma proibição do diabo. Portanto, não pode ser estável o pacto firmado, já que se fez na força de um erro ímpio contra Deus e, além disso, depois de havê-lo reprovado e condenado. Disse expressamente serem espíritos do erro os autores de tal proibição.

Por que, então, há de temer a aceitação desta sentença divina, ainda que se oponham todas as portas do inferno? Não se pode comparar isto com o juramento que os filhos de Israel fizeram aos gibeonitas, porque tinham o preceito de oferecer a paz e de admiti-la se lhes era oferecida; por isso, os admitiram na qualidade de prosélitos aderidos a seu rito. Tudo se fez em Gibeão: nada houve nele que se fizesse contra Deus, nem por sugestão dos espíritos do erro, e ainda que a princípio murmurassem, depois se achegaram a ele.[4]

Além do mais, acrescenta que o celibato é uma instituição meramente humana; o homem que o instituiu pede rescindi-lo e, portanto, pode executa-lo qualquer um cristão. Fixa-te que o digo, inclusive supondo que não tenha se estabelecido por demônios, senão por um bom homem.

Ao não contar com esta sentença divina que se refere aos monges, não é seguro afirmar o mesmo deles. Pessoalmente não me atreveria fazê-lo e, por isso, tão pouco aconselharia aos demais que o fizessem. Desejo fosse possível fazê-lo para que de agora adiante ninguém se fizesse monge, ou para que saíssem os que o são, e se encontram na idade da luxúria. Há que evitar os escândalos, ainda que fossem lícitos, nas coisas em que a Escritura não nos manifesta com clareza.

Quanto ao que o ótimo Karlstadt cita de são Paulo que “há que evitar as jovens viúvas e escolher as sexagenárias”[5], desejo que fosse convincente! Porque podem facilmente arguir que o apóstolo o estabelece para as futuras, e que das anteriores disse estar condenadas por haver falhado com o primeiro compromisso. Essa autoridade evitada não pode constituir um fiel apoio para a consciência, que é o que andamos buscando. E, o que é senão a razão a que inclui que “melhor é casar do que viver abrasado” para evitar a fornicação?[6] Então, o matrimônio com o pecado quebra o pacto. Somente buscamos a Escritura e o testemunho da vontade divina. Quem sabe se ao se abrasar hoje, não se abrasaria também amanhã?

Nem eu me atreveria conceder aos sacerdotes o matrimônio somente por esse abrasamento, se são Paulo não disse que tal proibição do matrimônio é errônea, diabólica, hipócrita e condenada por Deus.[7] Ou seja, que ainda que independente do ardor, têm que abandonar o celibato somente pelo temor de Deus. Mas sobre este problema seria útil discutir com maior compromisso. Seria muito satisfatório que pudesse ajudar aos frades e as freiras, mas eu sinto muito por estes pobres moços e moças, atormentados pelas poluições e coceiras.

Quanto à comunhão, sob as duas espécies, não argumentarei por meio de exemplos, senão com base na Palavra de Cristo. Não há argumento que convença de que peca, ou deixe de fazê-lo quem receba somente uma espécie; o que há que ter em conta é que Cristo não exige nenhuma das duas, como não exige necessariamente o batismo quando um tirano, ou o mundo fazem impossível recorrer à água. Também a violência das perseguições separa o marido da esposa que Deus proibiu que se separassem, sem que um ou o outro consentisse na separação. Da mesma maneira, tão pouco, quem os corações piedosos veem-se privados da segunda espécie, e quem o consente ou aprova, ninguém poderá negar que são papistas, e não cristãos, nem negar que cometem pecado.

Se não existe esta exigência da necessidade, e sendo que há um tirano que urge, não vejo como possa pecar quem recebe apenas uma espécie. Quem poderá eliminar pela força ao tirano que se opõe? Portanto, o único que vale é a razão que dita que não se observa o que foi estabelecido por Cristo, mas nada define a Escritura, sem a qual não podemos afirmar que constitua pecado. É algo formado por Cristo, mas livremente permitido e não pode ser cativado nem no todo, nem na parte. O que fazer se, como no caso do mártir Donato, que se rompeu e derramou o cálice e alguns não puderam comungar esta espécie, porque não se tem disponível mais vinho, ou se ocorressem em outras circunstâncias? Em resumo, sendo que a Escritura não se pronuncia, nem eu me atrevo dizer de minha parte que isto seja pecado. É muito conveniente, todavia, que restaurem ao seu prístino estado este ensino de Cristo, e precisamente este era o primeiro que havia pensado solicitar quando regressar aí. Conhecemos há muito este tirano, e podemos resisti-lo para não nos vermos obrigados a comungar somente sob uma espécie.

O que nunca voltarei a fazer é celebrar a missa privada. Rogo fervorosamente a Deus que se apresse em conceder-nos o seu Espírito em abundância. Suspeito que não tardará que Deus visite a Alemanha pelo merecido que tem a sua incredulidade, sua impiedade e seu ódio pelo evangelho. Quando isto acontecer eles lançarão sobre nós a culpa deste açoite, por provocarmos a Deus com nossa heresia e nos “convertemos na vergonha dos homens e no desejo do povo”;[8] mas, eles acharão desculpas para os seus pecados, se justificarão comprovando que os réprobos não se converterão, nem pela bondade, nem pela ira e muitos se escandalizarão. Que se faça, sim, que se cumpra a vontade do Senhor. Amém!

Se você é pregador da graça, prega a graça verdadeira, não a graça fingida; se a graça é verdadeira, tenha a certeza de que se trata do pecado verdadeiro, não do fingido, porque, Deus não salva os pecadores fingidos. Seja pecador e peque fortemente, mas confia e se alegre mais fortemente ainda em Cristo, vencedor do pecado, da morte e do mundo. Há de pecar enquanto vivamos aqui. Esta vida não é a morada da justiça, senão que, como disse Pedro, estamos a espera de novos céus e de nova terra em que habite a justiça.[10] Basta que pela riqueza da glória tenhamos conhecido o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo;[11] deste não nos separará o pecado, inclusive ainda que forniquemos e matemos milhares e milhares de vezes ao dia. Por que é que crê ser tão mingado o preço da redenção de nossos pecados, pago por tão grande e bom cordeiro?

Reza forte ainda que seja um pecador fortíssimo.

Dia do apóstolo são Pedro, 1521.[12]


NOTAS:
[1] WA Br 2, 370-372. Como se pode observar a carta somente foi conservada fragmentariamente. Felipe Melanchthon (1497-1560), indubitavelmente o personagem mais próximo de Lutero, apesar de seu distanciamento teológico progressivo e as suas diferenças de caráter, foi na realidade o primeiro sistematizador da teologia de Lutero (em suas Loci Communes, 1521). Lutero sempre o venerou, se preocupou com a sua saúde, o animou e lhe exasperou em muitas ocasiões. Está presente em quase todas as tentativas de aproximação entre Roma e a Reforma. Graças a ele pode-se preservar – ao menos num setor do luteranismo – um humanismo do qual o reformador e Amsdorf careciam. Cf. H. Bornkamm, Philipp Melanchthon, Göttingen 1950; P. Meinhold, Philipp Melanchthon, der Lehrer der Kirche, Berlin 1960; L. Stern, Martin Luther und Philipp Melanchthon. Ihre ideologische Herkunft und geschichtliche Leistung, 1953; W.H. Heuser, Luther und Melanchthon, Einheit in Gegensatz, München 1960; V. Vajta, Luther und Melanchthon, Göttingen 1961; M. Greschat, Melanchthon neben Luther, Witten 1965.
[2] Em 1 Tm 4:1. Veja a forma de argumentar de Lutero e a força que faz sobre determinadas passagens da Escritura.
[3] Bartolomé Bernhard de Feldkirch prefeito de Kemberg (daí a denominação de “cameracense” aludindo ao famoso Pierre d’Ally bispo de Cambrai) que se casou com farto consentimento de Lutero (Lutero e Melanchthon, 26 de Maio de 1521: WA Br 2, 347).
[4] Em Js 9:3 ss.
[5] Em 1 Tm 5:12. Esta primeira parte da carta, ponto de partida das variações posteriores do pensamento de Lutero sobre o celibato, esteve determinada pelas teses sustentadas por Karlstadt em Junho deste ano em Wittenberg.
[6] Em 1 Co 7:2 e 9.
[7] Ver nota 2 desta carta.
[8] Em Sl 22:7.
[9] Esta expressão foi uma das mais atacadas pela apologética antiluterana. Pelo contexto o leitor verá o forte conteúdo teológico e cristológico, veementemente (era o seu humor) expresso por Lutero. Uma exegese aceitável deste lugar, cf. J. Lortz, o.c. I, 317 ss.
[10] Em 2 Pe 3:13.
[11] Em 1 Jo 1:29.
[12] Festividade de São Pedro “ad vincula”.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), p. 385-387.

Tradução de 7 de Setembro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

terça-feira, 18 de março de 2014

Carta de Martinho Lutero a George Spalatino [1525]

A Spalatino. Em 16 de Junho de 1525.

A George Spalatino, servo de Deus, seu irmão em Cristo.


Graça e paz. Meu querido Spalatino, com Catarina von Bora tapei a boca aos que me difamam. Se lhe for conveniente preparar um banquete em testemunho deste meu matrimônio, será proveitoso que não somente esteja presente, mas também cooperes, se houver necessidade de carne. Entretanto, dá-nos tua benção e interceda por nós.

Com esta boda tenho-me feito tão desprezível e depreciado, que tenho esperança de que os anjos do céu riam e chorem todos os demônios. Os sábios não conhecem o mundo, nem o bom e sábio amor de Deus e somente em mim veem como um ímpio e diabólico. O melhor de tudo é que com este matrimônio se condena a incomodada opinião de todos quantos se empenham em continuar ignorando a Deus.

Adeus e rogue por mim.

Wittenberg, sexta-feira após o dia da Trindade, 1525.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), p. 401.

Tradução com introdução e notas em 17 de Março de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.



Oração de Philip Melanchthon

A ti, ó Filho de Deus, Restaurador da imagem desfigurada e deformada de Deus no homem, que morreste pelos nossos pecados e ressuscitaste par...