terça-feira, 28 de agosto de 2018

Carta de Martinho Lutero para George Spalatino [19 de Outubro de 1516]

19 de Outubro de 1516.


A George Spalatino, servo de Cristo e sacerdote do Senhor, mestre eruditíssimo, seu amigo sincero e íntegro irmão.

Jesus. Saudações. O que me estranha no eruditíssimo Erasmo, querido Spalatino, é o seguinte: que ao interpretar o apóstolo, entenda a justiça das obras, da lei ou própria (que assim a chama o apóstolo) como a observância das práticas cerimoniais, e defenda, além disso, que no capítulo quinto dos Romanos, o apóstolo não quis fazer referência ao pecado original (que ele, por outra parte, admite). Se lesse os livros que Agostinho escreveu Contra os pelagianos e, em especial, Do espírito e da letra, Do mérito e remissão dos pecados, Contra duas cartas dos pelagianos e Contra Juliano, inclusos quase em totalidade no volume oitavo de suas Obras, perceberia que não fala pessoalmente, senão apoiado nos pais de tanta importância como Cipriano, Nazianzeno, Rético, Irineu, Hilário, Olímpio, Inocêncio e Ambrósio. Se o fizesse, entenderia corretamente ao apóstolo e teria a Agostinho em maior apreço do que até agora tem professado.

Tenho certeza de que meu dissentimento com Erasmo procede do momento de interpretar as Escrituras Sagradas. Pois prefiro seguir a Agostinho do que a Jerônimo, na mesma medida em que ele prefere a Jerônimo do que a Agostinho. Não é que me deixe levar por predileções de minha confissão religiosa, quando intento revalidar a Agostinho; é que me dou conta de que são Jerônimo busca deliberadamente o sentido histórico e, o mais admirável, que interprete muito melhor as Escrituras quando o faz de modo acidental (por exemplo nas Cartas) do que quando o intenciona fazer exaustivamente como nos Opúsculos.

A justiça da lei ou das obras não se encontra somente nas práticas, mas também, e mais exatamente, nas obras de todo o decálogo; porque se observam fora da fé em Cristo, ainda que sejam capazes de fabricar Fabrícios, Régulos e homens integérrimos, saberão tanto de justiça como um arbusto sabe de figos. Como opina Aristóteles, não é realizando coisas justas como que nos justificamos, a não ser que se trate de uma simulação, mas que nos justificamos (por assim dizer), sendo justos é como realizaremos na justiça. É necessário que transforme primeiro a pessoa e depois se transformarão as obras. Agrada-se de Abel, antes que a sua oferta. Mas deixemos isto para outra ocasião.

Rogo-te que te portes como amigo e cristão, e faças saber isto a Erasmo. Porque o mesmo que espero e desejo que sua autoridade chegue a ser celebérrima, temo que muitos se escudem em seu patrocínio para defender a interpretação literal, ou seja, morta, da que estão repletos os Comentários de Lira e quase todos os que foram escritos posteriores a Agostinho. Até o próprio Estapulense, meu Deus, tão espiritual e tão sincero por outra parte, lhe falta na interpretação da Escritura Sagrada esta inteligência que está tão presente em sua vida e em seus conselhos.
Acreditarás que estou temeroso ao ver que passou sob a vara de Aristarco a homens tão eminentes, mas hás de saber que o faço por causa teológica, e pela salvação dos irmãos.

Adeus meu querido Spalatino, e rogue por mim. Escrevo-te a apressadamente, do recôndito de nosso monastério.

O dia seguinte à festa de são Lucas. 1516. Fr. Martinus Luther, agostiniano.


NOTAS:
[1] WA Br1, pp. 70-71. Spalatino (Georg Burckardt, de Spalt), da mesma geração que Lutero, ele viveu entre 1484-1545, exerceu um papel decisivo nos começos da Reforma, dada a sua posição na corte de Frederico, o Sábio, da Saxônia, de quem era chanceler e pregador. Foi o mediador entre o príncipe e Lutero, humanista, e quem soube frear certas destemperanças do reformador que lhe escreveu um numeroso corpo de cartas. Cf. 1. Hüss, Georg Spalatin, Weimar 1956; Id., Georg Spalatins Verháltnis zu Luther und der Reformation: Luther 31 (1960), pp. 67-80.
[2] Refere-se à edição das obras de Agostinho publicadas em Basiléia no ano de 1506.
[3] Sobre o apreço de Erasmo por Jerônimo, em coincidência com as predileções de todos os humanistas, cf. sua própria confissão a Leão X, em 1515 (Opus epistolarum D. Erasmi 11, ed. P.S. Allen, Oxford 1906, p. 80 e 220).
[4] Spalatino também era um mediador entre os humanistas e Lutero, cumpriu fielmente o encargo e na carta que escreveu a Erasmo lhe repete estes conceitos (cf. Opus epistolarum, 417).
[5] Refere-se a Nicolás de Lira (1270-1340) que no início do século XIV escreveu Postillae perpetue in vetus et novum testamentum com grande aceitação e impresso em 1471-1472.
[6] Lefévre d’Etaples (m. em 1536), patriarca do círculo humanista e reformista de Meaux, com algumas ideias próximas de Lutero. Continuou fiel à Igreja de Roma, mas alguns de seu intimidade (Farel, por exemplo) se tornaram em líderes fervorosos da Reforma protestante. Cf. F. Hahn. Faher Stapulensis und Luther: Zeitschrift für Kirchengeschitchte 57 (1938), pp. 356-432.
[7] Aristarco de Samotracia, gramático do século III a.C., que para Lutero, Erasmo e os humanistas era o símbolo das atitudes críticas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caro leitor, a sua opinião sobre este post é muito importante. Para boa ordem, os comentários são moderados e somente são publicados os que forem assinados e não forem ofensivos, lembrando que discordar não é ofensa. Por isso, sigo alguns critérios:
(1) Reservo-me no direito de não publicar comentários de "anônimos". Quer criticar e ter a sua opinião publicada, por favor, identifique-se. (2) Se quiser discordar faça-o com educação, e sem usar palavras imorais ou, ofensivas! (3) Ofereça o seu ponto de vista, contudo, não aceitarei que você ensine heresia em seu comentário, e não contribuirei para que ela seja divulgada neste espaço.

Carta de Johannes Aecolampadius para Hulrich Zwingli

20 de agosto de 1531.[1]   Saudações. Eu li, mui querido irmão, a opinião que você expressou a respeito do caso do rei da Inglaterra, e...