segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Carta de Martinho Lutero a Johannes Staupiz [Setembro de 1521]

A Staupitz. 9 de Setembro de 1521[1]


Jesus. Saudações. Em nada me preocupa a crítica do Capitão[2], nem a de Erasmo, nem me altera a opinião que sobre eles tenho formada. Temi que teria que me explicar com eles, até que me dei conta de que Erasmo estava muito longe do conhecimento da graça, sendo que, em todos os seus escritos não recorre à cruz, senão à paz. Ele crê que tudo pode ser tratado com certa cortesia e benevolência; mas, Behemoth[3] não anda com estas cerimônias e esse sistema é recomendado a ninguém.

Recordo o que aplicava em seu prólogo ao Novo Testamento: “O cristão tem facilidade de depreciar a glória.” Eu pensava comigo: “Oh! Erasmo, muito temo que esteja equivocado!” Grande coisa é depreciar a glória, mas não se referia ao desprezo que lhe poderiam fazer, senão ao que tinha em seu pensamento. Se não tem nenhum significado o desprezo da glória da palavra, menos valor terá o que existe somente no pensamento. Assim, segundo são Paulo “o reino de Deus está no poder”;[4] por isso, ainda não pude me gloriar em nada mais do que da palavra da verdade que me confiou o Senhor.

E por isso, os escritos destes homens que se abstêm de chicotear, de morder, de ofender, nada conseguem. Corrigem educadamente aos pontífices, o tomam como uma lisonja, e como se gozassem do direito de serem incorrigíveis, continuam tão satisfeitos de serem grandes e de que ninguém se atreva a repreendê-los. Estes são os personagens representados por Plutarco em seu livro Da Adulação, e aos que Jeremias fustiga de maneira mais severa e terrível: “maldito quem realiza fraudulentamente o trabalho do Senhor.”[5] Fala da ação da espada contra os inimigos de Deus. Inclusive me assusta e me ofende a consciência porque em Worms fiz caso do conselho que você me deu e os amigos, e não me mostrei forte de espírito, nem me exibi como um novo Elias diante daqueles ídolos.[6] Ouviriam outra coisa se comparecesse novamente diante deles. Mas não falemos mais disto.

O duque João, o Maior, está inteirado de meu paradeiro,[7] coisa que até o momento ignorava; meu anfitrião tem mantido em segredo, mas saberá calar. Encontro-me bem aqui, mas, miserável que sou, me faço preguiçoso, definho no espírito. Hoje, depois de seis dias, fiz do ventre fezes muito duras, que acreditei que exalaria a alma. Agora estou sentado, sentindo dor como uma recém-parida, lacerado, ferido, sangrando, e esta noite não terei nenhum descanso, mesmo que pouco. Dou graças a Cristo que não me priva de alguns dos fragmentos da santa cruz. Estaria curado de todas as feridas se tivesse o ventre ligeiro; mas o que sara em quatro dias volta a abrir toda vez que vou defecar. Digo a você estas coisas, não para que se compadeça de mim, mas para que me congratule e rogue para que me faça digno de fervor espiritual. Chegou o tempo de orar com todas as forças contra Satanás, porque anda gestando alguma tragédia funesta contra a Alemanha. Estou temendo que o Senhor permita e aqui me tenha roncando e vagaroso para orar, resistir, até tal ponto que estou violentamente descontente e cansado de mim mesmo, porque me encontro sozinho e vocês não me ajudam. Oremos e vigiemos para não entrar em tentação.[8] Por hora não tenho mais o que te dizer. Você sabe das demais coisas.

Alegro-me de que Wittenberg prospere, tanto mais porque isto ocorre durante a minha ausência, para que o ímpio veja, se irrite e pereça os seus desejos.[9] Que Cristo termine o que ele começou. Desejaria vividamente que Felipe[10] pregasse às pessoas em algum lugar da cidade nos dias de festa, quando aos poucos se entregarão à bebida e aos jogos, para que se introduzisse o hábito da liberdade[11] e se restituam a face e os costumes da igreja primitiva. Porque se desvalorizado a todas as leis humanas e rejeitado os seus jugos, então, por que é um obstáculo o fato de que não esteja ungido ou tonsurado e que seja casado? Se o anunciar a palavra é uma função sacerdotal, ele é um sacerdote e como sacerdote atua de fato; de outra forma, nem Cristo seria sacerdote, ele que ensinava nas sinagogas, nas barcas e beira mar, nas montanhas: sempre foi o mesmo em todos os lugares e em todos os momentos. Portanto, que não se negue a ninguém que sendo chamado por Deus e que exercendo o ministério da palavra, porque importa que mesmo não sendo chamado por estes tiranos, ou seja, bispos não das igrejas, senão de cavalos e lacaios de príncipes? Não obstante, conheço muito bem os sentimentos deste homem e sei que não se convencerá por minhas razões.

Tem que ser chamado e urgido por mandato e impulso de toda a comunidade. Se ela pede e lhe exige, não se deve, nem pode recusar. Se estivesse presente engajaria todo o meu esforço com o conselho e povo para que lhe pedissem que explicassem o evangelho em privado e em alemão, como comecei a fazê-lo em latim: assim, o bispo converteria em alemão o mesmo que o é em latim. Eu sentiria muita satisfação que fizesses de tua parte tal coisa uma realidade, porque o que mais urgentemente necessita o povo é a palavra de Deus; e que esta abunde no mais generosamente que em todos os demais, ao menos que, urgindo-o a consciência e exigindo-o a Deus, temos a obrigação de chamar-lhe para que não se desperdice o fruto da palavra.

A ti será fácil tratar este assunto no conselho por mediação de Lucas e Cristian[12] para que Cristo vindique a minha ausência e meu silêncio com a sua pregação e sua voz para confusão de Satanás e suas crias. Orígenes ensinou de modo privado as mulheres[13], então, por que motivo ele não tenta fazer o mesmo, sendo que ele pode e deve fazê-lo? E ainda mais quando o povo está necessitado e sedento. Rogo a você que não deixe se vencer por desculpas. Redigirá textos formosos que é algo que lhe é conveniente. Não há motivo para ambicioná-lo, mas tem que ser insistentemente chamado pela igreja, inclusive até solicitado para que este serviço e faça não o que seja útil para ele, senão que o que proveitoso para muitos. Ainda te suplico: coloque maior diligência em fixa-lo, ajudando-o com amigos que juntos possam apoiá-lo.

E adeus. Lembre-se de mim diante o Senhor.

Do deserto,[14] dia seguinte à natividade de Maria, 1521. Teu Martinus Luther.


NOTAS:
[1] WA Br 2, 387-389.
[2] Capitão a esta altura era um dos humanistas que se aproximava de Erasmo em Basiléia.
[3] Jó 40:15ss.
[4] 1 Co 4:20.
[5] Jr 48:10.
[6] 1 Rs 18:20ss.
[7] Irmão de Frederico, o Sábio.
[8] Mt 26:41.
[9] Sl 112:10.
[10] Felipe Melanchthon.
[11] Lutero pensa na liberdade da palavra de Deus, da pregação, e no sacerdócio universal dos crentes.
[12] Lucas Cranach, o célebre pintor, e Cristian Düring, o mais conhecido e talvez o maior impressor de Wittenberg, ambos seus amigos.
[13] Jerônimo, De viris illustribus, 54 (ML 23, 699).
[14] Denominação que ele aplica aos seus retiros forçados, agora em Warturb, logo (1530) nas cartas de Coburgo.

Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), p. 388-390.

Tradução em 5 de Janeiro de 2015.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

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