quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Tratado sobre a indulgência e a graça por Martinho Lutero [1518]

INTRODUÇÃO POR TEÓGANES EGIDO

Sempre desagradou a Lutero o êxito das 95 teses anteriores. Por isso pensou em dar-lhes nova forma, mais coerente e acessível, além disso, em alemão, como informa para Trutfetter (9 de maio de 1518, WA Br 1, 170). Ele não executou seu propósito, mas realizou em parte ao publicar em língua vernácula este pequeno tratado (sermão), que, graças aos trabalhos de Paulus e as investigações de Clemens (1, 10-11), sabe-se que apareceu em 04 de abril de 1518.

Lutero intencionava fazer ao máximo que suas teses anteriores fossem esquecidas (carta a C. Scheure, 5 de março de 1518, WA Br 1, 152). O sucesso destacou seu plano, pois enquanto são muitos os exemplares que se conservam deste tratado, somente três exemplares das teses foram encontrados (cf. Clemens, ibid.).

O escrito, mais condensado, sem os exageros do anterior, não deixa de negar as verdades das indulgências, se bem que a ação de coloca-las em dúvida já é suficientemente explícita. Insiste em aspectos já vistos, como os da oposição radical à escolástica, à teologia da cruz, limitação do poder da igreja, um latente antirromanismo, etc.

EDIÇÕES. Walch 2, 18, 270-275; E 27, 4-8; WA 1, 243-246; Cl 1, 11-14; Mu 3, 1, 109-112; LD 2, 83-87; Lab 1, 116-120.


TRATADO SOBRE A INDULGÊNCIA E A GRAÇA

1. Deveis saber, para começar, que alguns novos doutores, como o mestre das sentenças, S. Tomás e seus seguidores, dividem a penitência em três partes, a saber, na contrição, a confissão, a satisfação. Apesar de que tal distinção, segundo opinam, é difícil, ou melhor, impossível fundamentá-la na sagrada Escritura e nos doutores cristãos da antiguidade, não obstante vamos considera-las por agora e vamos aderir a sua forma de falar.
2. Afirmam que a indulgência não livra da primeira ou segunda parte, a saber, da contrição e da confissão, mas sim da terceira, ou seja, da satisfação.
3. Por sua vez, se divide a satisfação em três partes: oração, jejum, esmolas. A oração compreende todas as obras próprias da alma, tais como ler, meditar, escutar a palavra de Deus, pregar, ensinar e outras semelhantes. O jejum compreende as obras da mortificação da carne: vigílias, trabalhos árduos, camas duras, roupas rasgadas, etc. As esmolas compreendem toda classe de boas obras de amor e misericórdia para com o próximo.
4. Não há dúvida de que para todos eles as indulgências isentam destas mesmas obras satisfatórias que temos que fazer obrigatoriamente ou que nos tem sido impostas por causa do pecado. Pois bem, se a indulgência livrasse destas obras, já não restaria nada bom por praticar.
5. Entre muitos tem força certa opinião de que ainda não se decidiu: se as indulgências livram de algo mais do que destas boas obras, a saber, se perdoam também as penas que a justiça divina exige pelos pecados.
6. Neste momento não refutarei esta opinião. Afirmo o seguinte: que não se pode provar com base em texto algum que a justiça divina deseje ou exija do pecador qualquer pena ou satisfação, a não ser unicamente a contrição sincera de seu coração ou a conversão, com o propósito firme de levar adiante a cruz de Cristo e de exercitar-se nas obras mencionadas (mesmo que nada lhes seja imposto), porque Deus disse por boca de Ezequiel: “Se o pecador se converte e se comporta como convém, me esquecerei de seus pecados”.[1] Ademais, ele mesmo perdoou a todos: a Maria Madalena, ao paralítico, a mulher adúltera, etc. Eu me encantaria escutar a qualquer que provasse o contrário, desconsiderando o que tenham pensado alguns doutores.
7. Nos deparamos com a verdade de que Deus castiga a alguns segundo sua justiça ou que por meio das penas os leva à contrição, como diz o Salmo 88: “Se seus filhos cometem pecados, eu castigarei suas transgressões coma vara, porém não lhes negarei minha misericórdia”.[2] Não obstante, não existe poder humano capaz de cancelar estas penas; somente o poder divino pode fazê-lo. Mais ainda: Ele não deseja cancelá-las, pelo contrário, promete que quer impô-las.
8. Por este motivo não se pode dar nenhum nome a esta pena imaginária, nem se sabe nada em que consiste, senão nestas boas obras acima indicadas.
9. Afirmo que, embora a igreja cristã tenha decidido ou declara ainda hoje que a indulgência perdoa mais que as obras satisfatórias, seria mil vezes melhor que o cristão cumprisse estas obras e sofresse esta pena do que comprar ou desejar esta indulgência. Porque a indulgência não é, nem pode ser outra coisa senão abandono das boas obras e de uma pena saudável, que melhor seria desejar do que abandonar; e que, embora alguns dos novos pregadores tenham inventado duas classes de penas, medicinais e satisfatórias, visando ao conserto ou à satisfação. Não obstante, louvado seja Deus, gozamos nós de maior liberdade para depreciar tais coisas e charlatanismos semelhantes que eles inventam; porque toda pena, ou seja, tudo o que Deus impõe, é bom e proveitoso para os cristãos.
10. Com isto não se quer dizer que as penas e as obras sejam excessivas, e que o homem, na brevidade da vida, não possa cumpri-las, motivo pelo qual a indulgência se faria imprescindível. Respondo que isto não tem fundamento nenhum e que é uma pura invenção. Nem Deus nem a santa igreja impõem nada que não se pode cumprir; também S. Paulo declara que Deus não prova em nada mais além de suas forças.[3] Isto influencia, não pouco, na desonra da cristandade, ao fazê-la responsável de impor mais do que podemos suportar.
11. Mesmo que a penitência canônica estivesse em vigor, a saber, se por cada pecado mortal fossem impostos sete anos de penitência, a cristandade deveria abandonar estas leis e não impor nada além do que cada um pode cumprir, menos motivo haverá para impor mais do que se pode suportar agora, quando estas leis já não tem mais valor algum.
12. Diz-se que o pecador, com o que ainda lhe resta sofrer, tem que ir ao purgatório ou fazer uso das indulgências, mas dizem tantas coisas sem razão nem com qualquer tipo de prova.
13. É um erro grande querer satisfazer alguém por seus pecados, quando Deus os perdoa ilimitadamente de forma gratuita por sua inestimável graça e sem nenhuma exigência em troca. A única exigência de Deus é que daí em diante se leve uma vida boa. A cristandade exige algumas coisas; também pode cancelá-las e não impor nada que seja difícil e insuportável.
14. A indulgência tem sido autorizada por causa dos cristãos imperfeitos e preguiçosos, que não querem exercitar-se com valentia nas boas obras, ou por causa dos rebeldes. Como a indulgência não anima em nada a consertar-se, senão que mais tolera e autoriza sua imperfeição, não se deve falar nada contra a indulgência, nem tampouco há de se recomendá-la a nada.
15. Agiria muito melhor quem desse algo puramente por amor a Deus para a fábrica de S. Pedro ou para outra coisa, em lugar de adquirir em troca uma indulgência. Porque se corre o perigo de fazer tal doação por amor à indulgência e não por amor a Deus.
16. É muito mais valiosa a esmola dada ao indigente do que a outorgada para este edifício; é muito melhor do que a indulgência conseguida pela troca. Porque, como já se tem dito, vale muito mais uma boa obra cumprida do que muitas menosprezadas. Com a indulgência, ou se omite de muitas boas obras ou não se consegue nenhuma remissão. Prestem atenção no que vou lhes dizer para instruí-los como é devido: antes de qualquer coisa (e sem levar em conta o edifício de S. Pedro e a indulgência), se queres dar algo, deve dar ao pobre. Se acontece que em sua cidade não há ninguém necessitado de socorro (o que Deus quer nunca acontecerá), então, se assim o desejas, poderá dar para igrejas, altares, ornamentos, cálices da sua cidade. Se isto não for necessário para o presente, e se te parece bem, poderás dar para a fábrica de S. Pedro ou para qualquer outra coisa. Mas nem neste caso deverás fazê-lo para ganhar a indulgência, porque declara S. Paulo: “Quem não cuida dos membros de sua família não é cristão, é pior que um pagão”.[4] Enfim, para expressar meu pensamento: qualquer um que te ensine de outra maneira está te induzindo ao erro ou anda buscando sua alma dentro de seu bolso, e se nele encontrar alguns centavos, terá mais interesse neles do que em todas as almas. Se você diz que não voltará a comprar indulgências, te respondo: “já lhe disse antes; minha vontade, meu desejo, minha constante súplica e meu conselho é que ninguém compre a indulgência. Deixa que os cristãos preguiçosos e sonolentos as comprem; Você, segue o seu caminho.”
17. A indulgência não é recomendada nem aconselhada: busque as coisas autorizadas e permitidas. Por este motivo, não é uma obra de obediência, nem meritória, senão uma evasão da obediência. Portanto, embora não se deva proibir ninguém que as adquira, se deveriam afastar delas todos os cristãos, e estimulá-los à mudança para se fortificarem pelas obras e pelas penas que anulam a indulgência.
18. Que em virtude da indulgência salvar as almas do purgatório ser algo que ignoro e que não creio ainda, embora alguns novos doutores o afirmem; e como lhes é impossível provar, e ainda, a igreja nada tem decidido a respeito, para maior segurança é muito melhor, mais valioso e seguro que intercedas e trabalhe por estas almas.
19. Estou totalmente convencido da certeza destes pontos, suficientemente fundados na Escritura. Por isso, não duvide deles, e deixe que os doutores escolásticos sigam sendo “escolásticos”; Deixe-os todos com suas opiniões, incapazes de autorizar sua pregação.
20. Não me importa muito que no presente me considerem como herege, alguns a quem esta verdade cause forte prejuízo, posto que somente me qualificam assim algumas mentes tenebrosas que jamais ouvem a Bíblia nem leem os doutores cristãos, que nunca compreendem seus próprios mestres e que estão a ponto de decompor-se em suas opiniões proferidas, de agoureiros e sem fundamento; porque se os houvessem compreendido, entenderiam que não devem qualificar de blasfemo a ninguém sem tê-lo escutado e convencido. Que Deus, não obstante, lhes conceda e nos conceda um espírito reto. Amém.

NOTAS:
[1] Ez 18, 21; 33, 14-16
[2] Sal 89, 31-34
[3] 1 Cor 10,31
[4] 1 Tim 5, 8.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 70-73.

Traduzido em 18 de Fevereiro de 2014.
Rev. Evanderson Henrique da Cunha, M.Div.
Coordenador do Seminário Presbiteriano Brasil Central - Extensão Rondônia
Professor do Departamento Teologia Pastoral

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caro leitor, a sua opinião sobre este post é muito importante. Para boa ordem, os comentários são moderados e somente são publicados os que forem assinados e não forem ofensivos, lembrando que discordar não é ofensa. Por isso, sigo alguns critérios:
(1) Reservo-me no direito de não publicar comentários de "anônimos". Quer criticar e ter a sua opinião publicada, por favor, identifique-se. (2) Se quiser discordar faça-o com educação, e sem usar palavras imorais ou, ofensivas! (3) Ofereça o seu ponto de vista, contudo, não aceitarei que você ensine heresia em seu comentário, e não contribuirei para que ela seja divulgada neste espaço.

Carta de Johannes Aecolampadius para Hulrich Zwingli

20 de agosto de 1531.[1]   Saudações. Eu li, mui querido irmão, a opinião que você expressou a respeito do caso do rei da Inglaterra, e...