18 de Janeiro de 1518[1]
Ao seu irrepreensível George Spalatino,[2] verdadeiro discípulo de Cristo e irmão.
Jesus. Saúde. Até agora você tem me perguntado algumas coisas, ótimo Spalatino, cuja resposta dependia de minha capacidade ou de minha temeridade; agora, ao rogar-me que te oriente em que concerne o conhecimento da Sagrada Escritura, me levanta um problema que excede em muito todas as minhas forças. E, é que nem eu mesmo posso encontrar quem me guie no assunto com tanta transcendência. Cada um, inclusive os mais eruditos e melhores intelectuais, podem perceber o seu lazer. Aí tem a Erasmo: afirma publicamente que são Jerônimo é um teólogo de categoria tal, que a segundo a sua predileção deveria ser o único que tomasse em consideração. Pois bem, se ousar antepor a santo Agostinho, e se me tomasse por árbitro parcial e suspeito por causa de minhas confessas simpatias e de sentença divulgada, e que a tempos aceitei de Erasmo, que afirmou que seria uma enorme vergonha comparar Agostinho com Jerônimo. Outros abundam outras opiniões.
Da minha parte, dada minha pobre erudição e escassa inteligência, não me atreveria a dizer nada em assuntos de tanta importância e entre juízes tão qualificados. A Erasmo sempre o louvo, e o defendo ante todos os que deliberadamente odeiam a Escritura Sagrada, ou a desconhecem por ignorância,[3] mas, intencionalmente me guardo de vomitar no que discordo dele para não alimentar a inveja que eles têm, e apesar disto que vejam em Erasmo muitas coisas que me parecem tão pouco imprudentes para chegar ao conhecimento de Cristo. Tudo isto, está claro, falando como um teólogo, e não como um gramático; porque, de outra forma, o próprio Jerônimo, tão celebrado por Erasmo, não encontraria nada mais erudito e inteligente que isto.
Você sabe que violará o sagrado da amizade se comunicar a alguém a minha opinião sobre Erasmo. Não te digo isto em vão. Bem sabe que há muitos que deliberadamente andam a caça de motivos para caluniar aos bons eruditos. Permaneça em segredo o que disse. E ainda mais: não me faças caso, até que você mesmo não tenha se convencido disto pela leitura.
Não obstante, se te empenha em saber do meu programa de erudito, eu confiarei por completo a você um grupo de amigos íntimos, mas sob a condição de que não me sigas, a não ser criteriosamente. A primeira coisa que você tem que ter presente é a certeza indestrutível de que a Escritura Sagrada é impossível penetrá-la baseado no estudo e inteligência. Portanto, teu primeiro empenho será o começar pela oração; mas, uma oração em que peça para que a mais pura misericórdia te conceda a inteligência da sua palavra, e que se agrade de te usar para a sua glória, não para a tua, nem para a de nenhum humano. Nenhum mestre das palavras divinas poderá ser o melhor do que seu próprio autor, de acordo com o que disse: “todos serão ensinados por Deus.”[4] Portanto, convém sobremaneira que você se desespere com todas as suas forças e de toda a tua inteligência e confie unicamente na ação do Espírito. Atente a quem te diz por experiência própria.
Baseado neste humilde desespero, depois leia a Bíblia em ordem, desde o princípio até o fim, para que aprendas primeiro e de memória a narração livre (o que imagino que terá feito). Para isto será muito proveitoso são Jerônimo em suas Cartas e Comentários, mas para chegar ao conhecimento de Cristo e da graça – ou seja, para penetrar na inteligência mais secreta do espírito – parecem-me muito mais coerentes que santo Agostinho e Ambrósio, porque a percepção de que são Jerônimo “originou” (ou seja, alegorizou) demasiadamente.[5] Digo isto, mas deixo o a juízo de Erasmo, pois, não me pediu a opinião de Erasmo, e sim a minha.
Se lhe agrada o meu método começará pela leitura de Do espírito e da letra de santo Agostinho, obra que o nosso Karlstadt,[6] homem de incomparáveis conhecimentos, explicou e editou com admiráveis comentários. Leis depois o livro Contra Juliano e Contra as cartas dos pelagianos. Também acrescente Da vocação de todas as nações de são Ambrósio, se bem que pelo estilo, pela inteligência e pela cronologia deva ser atribuído a outro autor; todavia, está cheio de erudição. Deixe os demais para depois, se é que resultarem de teu agrado o que indiquei a você. E perdoe-me a temeridade de atrever-me antepor em assunto tão árduo o meu sistema ao de outros de tanto peso.
Por fim, renunciarei da Apologia de Erasmo, mas me afeta veementemente o duelo que desencadeou entre dois príncipes das letras.[7] Erasmo está muito acima de todos, e é o que melhor se expressa, mas também é o mais amargo apesar de seus esforços por conservar a amizade.
Adeus meu Spalatino. Em nosso monastério, dia de santa Prisca, quando recebi a sua carta, 1518. Fr. Martinus Eleutherius. O P. Staupitz anda por Munich, em Baviera; e de lá acaba de escrever-me.
NOTAS:
[1] WA Br 1, 133-134. Do valor doutrinário desta carta deu testemunho o próprio destinatário com a nota marginal que lhe pôs: “1518. Introductio in theologiam”.
[2] WA Br 1, pp. 70-71. Spalatino (Georg Burckhardt, de Spalt) da mesma geração que Lutero. Ele viveu entre 1484-1545, realizou um papel decisivo no início da Reforma devido a sua posição na corte de Frederico, o Sábio da Saxônia, de quem era chanceler e pregador. Foi o mediador entre o príncipe e Lutero, que como humanista, soube frear certas exageros do reformador que escreveu um numeroso corpo de cartas. Cf. I. Hüss, Georg Spalatin, Weimar 1956; Id., Georg Spaltins Verhâltins zu Luther und der Reformation: Luther 31 (1960), pp. 67-80. Nota de Teófanes Egido.
[3] Alude aos escolásticos, tão maltratados pelos humanistas e o reformador, numa das poucas coisas em que estavam de acordo. Nota de Teófanes Egido. Erasmo criticando os teólogos escolásticos declara que “arrogam-se insolentemente o direito de definir e discutir verdades incompreensíveis, profanando assim a majestade da teologia com as palavras e sentenças mais insulsas e triviais. No entanto, esses insignificantes faladores envaidecem-se com sua vazia erudição e experimentam tanto prazer em ocupar-se dia e noite com essas suavíssimas nênias que nem tempo lhe sobre para ler ao menos uma vez o Evangelho e as cartas de são Paulo.” Erasmo Rotterdam, Elogio da loucura (São Paulo, Editora Martin Claret, 2002), p. 82. Igualmente Lutero declara o seu rompimento formal com os escolásticos em sua Disputatio contra scholasticam theologiam. Martinho Lutero, “Debate sobre a Teologia Escolástica” in: Obras Selecionadas – Os primórdios escritos de 1517-1519 (São Leopoldo, Editora Sinodal & Concórdia Editora, 1987), vol. 1, pp. 13-20. Nota do tradutor.
[4] Jo 6:45.
[5] Lutero está fazendo menção a Orígenes, conhecido pelo seu método alegórico, segundo a Escola de Alexandria. Nota do tradutor.
[6] Karlstadt (Andreas Rudolf Karlstadt, 1480-1541). A opinião de Lutero é dos primeiros anos, quando Karlstadt era seu defensor sem restrições. Depois, por interpretações pessoais da Escritura, distanciou-se de Lutero na doutrina e nas práticas eucarísticas, sobressaindo-lhe, chegando a posturas sócio-religiosas “iluminadas”. Terminou como um dos personagens mais odiados por Lutero, sobretudo desde 1523. Cf. E. Hertzsch, Karlstadt und seine Bedeutung für das Luthertum, Gotha 1932.
[7] Refere-se a Apologia contra L. d’Etaples, editada em 1517, e a controvérsia entre ambos a propósito de determinados problemas da carta aos Hebreus.
Traduzido de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 374-376.
Tradução com introdução e notas em 22 de Fevereiro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.
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