A George Spalatino, servo de Cristo e sacerdote do Senhor, eruditíssimo mestre, seu amigo sincero e íntegro irmão.
Jesus. Saudações. O que me estranho no eruditíssimo Erasmo, querido Spalatino, é o seguinte: que ao interpretar o apóstolo entenda a justiça das obras, da lei ou própria (que assim a chama o apóstolo) como a observância das práticas cerimoniais e defenda, além disso, que no capítulo quinto aos Romanos, o apóstolo não intencionou referir-se ao pecado original (que ele, noutra parte, admite). Se ler os livros que Agostinho escreveu aos pelagianos, e em especial Do espírito e da letra, Do mérito e a remissão dos pecados, Contra as cartas dos pelagianos e Contra Juliano, inclusos em quase a sua totalidade no oitavo volume de suas Obras,[2] perceberia de que não fala a sua opinião pessoal, mas apoiado em pais de tanta importância como Cipriano, Nacianceno, Rético, Ireneu, Hilário, Olímpio, Inocêncio e Ambrósio. Se fizesse corretamente entender o que disse o apóstolo, teria em Agostinho um maior apreço do que até agora manifesta.
Estou certo de que meu dissentimento com Erasmo procede de que no momento de interpretar as Sagradas Escrituras prefiro seguir a Agostinho que a Jerônimo, na mesma medida em que ele prefere a Jerônimo que a Agostinho.[3] Não que eu me deixe levar por predileções de minha confissão religiosa quando intento revalidar a Santo Agostinho; é que percebo que São Jerônimo busca deliberadamente o sentido histórico e – o mais admirável – que interpreta muito melhor as Escrituras quando o faz de forma incidental (por exemplo, nas Cartas) do que quando o quer fazer exaustivamente, como nos Opúsculos.
A justiça da lei ou das obras não se encontra somente nas práticas, mas também, e mais exatamente, nas obras de todo o decálogo; porque se observar fora da fé em Cristo, ainda que sejam capazes de fabricar Fabrícios, Régulos e homens de integralíssimos, ainda assim saberiam tanto da justiça como a sorbus[4] sabe de figos. Discordando de Aristóteles, não é realizando coisas justas que nos justificamos – a não ser que se trate de uma simulação – mas que justificando-nos (por assim dizer) e, sendo justos é como realizaremos a justiça. É necessário que se transforme primeiro a pessoa e depois se transformarão as obras. Agrada Abel antes que sua oferta. Mas deixemos isto par outra ocasião.
Rogo-te que portes como amigo e cristão e faças saber isto a Erasmo.[5] Porque o mesmo que espero e desejo que sua autoridade chegue a ser celebérrima, temo que muitos se escudem em seu patrocínio para defender a interpretação literal, que equivale dizer morta, da que estão repletos os Comentários de Lira, e quase todos os posteriores a Agostinho.[6] Até mesmo Estapulense, meu Deus, tão espiritual e tão sincero por outra lado, na interpretação da Sagrada Escritura lhe falta inteligência que tem tão presente em sua vida e em seus conselhos.[7]
Terá um sentimento temerário ao ver que passo sob a vara de Aristarco[8] a homens tão eminentes, mas saberá que o faço pelo motivo teológico e pela salvação do irmãos.
Adeus, meu querido Spalatino, e rogue por mim. Escrevo para você às pressas, do interior de nosso monastério, no dia seguinte à festa de são Lucas. 1516.[9]
Fr. Martinus Luther, agostiniano.
NOTAS:
[1] WA Br 1, pp. 70-71. Spalatino (Georg Burckhardt, de Spalt) da mesma geração que Lutero. Ele viveu entre 1484-1545, realizou um papel decisivo no início da Reforma devido a sua posição na corte de Frederico, o Sábio da Saxônia, de quem era chanceler e pregador. Foi o mediador entre o príncipe e Lutero, que como humanista, soube frear certas exageros do reformador que escreveu um numeroso corpo de cartas. Cf. I. Hüss, Georg Spalatin, Weimar 1956; Id., Georg Spaltins Verhâltins zu Luther und der Reformation: Luther 31 (1960), pp. 67-80. Nota de Teófanes Egido.
[2] Se refere à edição das obras de São Agostinho de Basiléia, 1506. Nota de Teófanes Egido.
[3] Sobre o apreço de Erasmo com São Jerônimo – coincidentemente com as predileções de todos os humanistas – cf. sua própria confissão a Leão X, em 1515 (Opus epistolarum D. Erasmi II, edic. P.S. Allen, Oxford 1906, pp. 86 e 220). Nota de Teófanes Egido.
[4] É a planta que produz os frutos utilizados para fazer a vodca russa. Nota do tradutor.
[5] Spalatino também mediou entre os humanistas e Lutero, cumprindo fielmente o cargo e na carta que escreveu a Erasmo lhe repete estes conceitos (cf. Opus epistolarum, 417). Nota de Teófanes Egido.
[6] Refere-se a Nicolas Lira (1270-1340), que no início do século XIV escreveu Postillae perpetuae in vetus et novum testamentum, tendo grande aceitação e várias publicações em 1471-1472. Nota de Teófanes Egido.
[7] Lefévre d’Etaples (faleceu em 1536) foi patriarca do círculo humanista e reformista de Meaux, com algumas ideias semelhantes de Lutero. Continuou fiel à Igreja de Roma, mas alguns de seu circulo (por exemplo Farel) se tornariam em paladinos fervorosos da Reforma protestante. Cf. F. Hahn, Faber Stapulensis um Luther: Zeitschrift für Kirchengeschichite 57 (1938), pp. 356-432. Nota de Teófanes Egido.
[8] Aristarco de Samotracia foi gramático do século III, que para Lutero, Erasmo e os demais humanistas era o símbolo das atitudes críticas. Nota de Teófanes Egido.
[9]Teófanes Egido no prefácio da coletânea das “Cartas” de Lutero afirma que [nota do tradutor]:
Nem os escritos maiores, nem muitas vezes as suas obras ocasionais, são válidas para traçar os sentimentos, as reações, as preocupações profundas e as alegrias de Lutero. As cartas constituem o melhor instrumento para reconstruir a sua íntima biografia. Não apenas isso, como poderemos observar, pois algumas das cartas inclusas nesta edição são verdadeiramente programáticas ou possuem conteúdos básicos de sua teologia e do primeiro período da história do “protestantismo”.
O fato de que ser possível se reunir na edição crítica de Weimar o elevado número de aproximadamente 4500 cartas, indica o que na realidade deveria ser a atividade epistolar de Lutero, sendo que, forçosamente, as que se perderam são em número mais do que as coletadas nestes 14 volumes da citada edição.
Procuramos oferecer amostras de todos os tons, cartas onde pontifica, anatematiza, onde se humilha diante de Erasmo, ou esbraveja contra ele, nas que expõe as suas convicções, as suas misérias, o convite da festa de casamento, ou, na que salta de ternura diante do seu filho, as cheias de sentimento por sua Cate e as formosas antologias da série de Coburgo. Esperamos que o esforço de selecionar corresponda a nossa intencionalidade.
As edições das Cartas de Lutero que usamos de base foram as seguintes. As publicadas pela edição Walch (volume 21 da primeira, 21a e 21b da segunda) da metade do século XVIII. A coleção de M. de Vette – J.R. Seidemann, Luthers Briefe, Berlim 1825-1828, 1856. A mais completa de L. Enders – G. Kawerau, Dr. Martin Luthers Briefwechsel, Berlim, 19 volumes, Frankfurt-Stuttgart-Leipzig 1884-1907, 1932 (incorporadas na edição Erlangen). Todas as cartas consultadas foram revisadas à luz das informações da edição crítica de Weimar, Briefwechsel, 14 volumes, 1930-1970. Nos servimos também, para aclarar muitos detalhes, das correções de H. Rückert, Luthers Briefe, Berlim 1966 (volume 6 da edição de CI), assim como LW 48-50 e Lab 8.
Para evitar reiterações e facilitar as citações, somente ofereceremos a referência obrigada do lugar correspondente a cada carta na clássica e, por agora, definitiva edição Weimar.
Traduzido de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 373-374.
Tradução com introdução e notas em 20 de Fevereiro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.
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