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sábado, 12 de abril de 2014

Carta de Martinho Lutero a Erasmo de Rotterdam [1519]

A Erasmo em Basiléia. 28 de Março de 1519[1]

Jesus. Saudações. Quantas vezes, conversei com você Erasmo, nossa glória e nossa esperança, e você comigo, e ainda não nos conhecemos! Estranho isso, não é mesmo? Não, não é de se estranhar devido às muitas tarefas de todos os dias. Quem há cujas dificuldades mais profundas não ocupem Erasmo, a quem Erasmo não ensine, em que Erasmo não domine? Refiro-me com clareza a quem devidamente ama as letras. Agrada-me, sobremaneira, que outros presentes de Cristo possam se enumerar também, os quais a muitos resultem em perturbação; precisamente nisto me apoio para discernir os dons do misericordioso Deus, dos do Deus irado. Felicito-o, porque ao mesmo tempo resulta em tão grato motivo a todos os bons, desagrada não menos aqueles que anelam ser os únicos supremos e o mais gratos.

Mas, eu seria um néscio, que com as mãos sem lavar e sem um prefácio de reverência e honra com que me dirijo a você, varão de categoria incomparável, como um desconhecido se dirige a outro desconhecido. A sua humanidade saberá desconsiderar a minha amizade, ou a minha imperícia, já que, transcorrido minha existência entre os sofistas, nem sequer aprendi a forma de saudar por carta a um homem erudito. Doutro modo com quantas cartas o fadiguei demoradamente, sem poder sofrer que estivesse me falando perpetuamente na solidão da minha cela!

Mas, através do excelentíssimo Fabrício Capitão[2] fui informado de que, graças a aquela bagatela das indulgências, meu nome tornou-se noticiado para você, e que não somente leu, como também aceitou as minhas insignificantes afirmações no prólogo de uma edição posterior de sua Enchiridion[3], então, senti a obrigação ainda que fosse por esta barbaríssima carta, de reconhecer o teu espírito egrégio, filão que enriquece ao meu, bem como o de todos. Ainda que seja consciente do pouco que significará para você, que por carta me confesse devoto e agradecido (a você, a quem excede com seu ânimo fervoroso, com oculto agradecimento e amor de Deus, como nos basta, apesar de não nos conhecer, considera os seus sentimentos e suas obras nos livros, sem necessidade de cartas, nem de conversas pessoais), todavia, nem o pudor, nem a consciência sofre que não manifeste o meu agradecimento por escrito, e mais desde que o meu nome começou a sair da obscuridade, para que a ninguém incorra interpretar o silêncio como algo mal-intencionado e péssimo.

Portanto, meu Erasmo, homem amável, se a você parece reconhecer este menor irmão em Cristo, devotíssimo e afeitíssimo por você, ainda que por sua ignorância não mereça outra coisa, senão que jazer enterrado num rincão, desconhecido até para o sol e o céu de todos, que é o que sempre desejei; não por preguiça, senão porque era consciente de meu limitado recurso. Mas não me explico porque tenha distorcido alguma coisa, de modo que me veja forçado a padecer com grande vergonha, e que minhas ignominias e minha infortunada ignorância se vejam agitadas e ocupadas diante dos doutores.

Felipe Melanchthon está bem. Apenas se conseguirmos entre todos que não exponha a sua saúde em esforço de sua excessiva paixão pelas letras. O ardor de sua idade lhe arde em desejos de fazer tudo ao mesmo tempo. Bom serviço prestaria se o advertir por carta que se guarde por amor de nós, e às boas letras. Nada melhor poderíamos prometer-nos que a salvação desta cabeça.[4]

Saúda-o Andres Karlstadt[5] que em o venera de todo em Cristo. Que o mesmo Jesus o guarde sempre, excelente Erasmo, amém. Resultei verboso, mas estará de acordo, em que não te convém ler sempre cartas eruditas e que, de vez em quando “com os enfermos tem de enfermar”.[6]

Wittenberg, dia quinto das calendas de Abril, 1519.


NOTAS:
[1] WA Br 1, pp. 361-363. Lutero se dirige a Erasmo com humildade estratégica e forçada. É evidente a sua intencionalidade. Há que contrastar estes tons com os das cartas 1 e 2.
[2] Capitão comunicou a Lutero por carta (WA Br 1, p. 197) a admiração de Erasmo. Wolfgang Fabrício Capitão (1478-1541), em 1519, todavia, ainda estava nas fileiras católicas, mas, posteriormente tornou-se um dos reformadores de Estrasburgo, de talante conciliador.
[3] Erasmo, na edição de 1518, colocou um prólogo com pontos de convergência das ideias das 95 Teses de Lutero.
[4] Assim fez Erasmo no mês seguinte, numa carta dirigida a Melanchthon (Opus epistolarum, 3, p. 540).
[5] Cf. carta 2, nota 5.
[6] 1 Co 9:12. Esta tradução mencionada por Lutero não equivale ao texto grego. Difícil descobrir qual fonte, ou se foi uma citação parafraseada de memória [imprecisa] do texto bíblico. A sua tradução final para o alemão é "So andere dieser Macht an euch teilhaftig sind, warum nicht viel mehr wir? Aber wir haben solche Macht nicht gebraucht, sondern ertragen allerlei, daß wir nicht dem Evangelium Christi ein Hindernis machen" [Se outros participam de vocês, não seria muito mais do que nós? Mas, temos um direito que não é necessário, para suportar todas as coisas, para que não façamos um obstáculo para o evangelho de Cristo]. É possível que Lutero esteja citando a tradução latina do Novo Testamento de Erasmo. Nota do tradutor.

Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp.. 378-379.
Tradução com introdução e notas em 12 de Abril de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Carta de Martinho Lutero à Johannes Staupitz [1519]

A Staupitz. 20 de Fevereiro de 1519[1]

Ao reverendo e excelentíssimo padre Johan Staupitz, vigário dos Ermitões de Santo Agostinho, e no culto de Cristo, o seu patrono e superior.

Jesus. Saudações. Reverendo padre: Ainda que esteja tão longe de mim e tão calado que não me escreva as esperadíssimas cartas, me atreverei a quebrar o silêncio.[2] Desejo – bem como desejam todos – que te deixes ver alguma vez nesta situação afligida pelas pragas do céu. Espero haver chegado até você as minhas Atas[3], ou seja, a cólera e a indignação de Roma. Deus não somente me conduz, me arrebata, como também me empurra; não estou em minha sensatez: quero estar tranquilo e todavia, me vejo pressionado no fragor dos tumultos.

Carlos Miltitz entrevistou-me em Altenburg[4]. Estava queixoso de que eu tinha ganho a todos para a minha causa e os afastado do papa. Da exploração que fiz em todas as hospedagens deduzi que apenas dois a cada cinco estavam a favor de Roma. Depois, na corte do príncipe, informei-me que vinha armado com setenta breves apostólicos a fim de conduzir-me preso para a Jerusalém homicida, a essa Babilônica de púrpura.[5] Quando desesperou-se neste projeto começou a tratar de que eu restituísse à igreja romana o que lhe havia roubado, e se empenhou em convencer-me que eu me retratasse. Ao rogar-lhe que me indicasse no que tinha que retratar-me, por fim, nos convencemos em remeter a causa a alguns bispos. Propus-lhe o arcebispo de Salzburg, bem como ao de Tréveres e ao de Freising. Pela tarde fui convidado, estivemos alegres na comida e nos separamos depois de haver me dado um ósculo. Comportei-me como se não estivesse consciente dessas italianidades e simulações. Também convocou a Tetzel e lhe repreendeu. Em Leipzig, por fim, o convenceu de que gozasse de uma estupenda mensalidade de noventa florins e mais três empregados e uma carruagem livre de todo custo. Então, Tetzel desapareceu; ninguém – talvez, a exceção de seus progenitores – sabe para onde ele se foi.[6]

Eck, meu homem astuto, quer arrastar-me para novas disputas, como pode ver no que te adjunto. Desta maneira, Deus cuida em manter-me andando ocupado. Mas, se é a vontade de Cristo, desta disputa nada de bom poderá saldar para os direitos e usos de Roma, que são o cetro em que Eck se apoia.[7]

Eu gostaria que visse os meus livretos impressos em Basiléia[8] e que confrontasse o que os eruditos opinam sobre mim, sobre Eck, sobre Silvestre e sobre os teólogos escolásticos. Equivocando-se deliberadamente, com muitíssimo gracejo, chamam Silvestre (além de outras coisas cheias de humor) de magiro de palácio, em lugar de mestre de palácio (magiro em grego significa cozinheiro)[9]. Isto cairá mal aos heróis romanos. Rogo a ti: reze por mim. Confio com firmeza que o Senhor forçará ao teu coração para cuidar de mim. Sou um homem que está em perigo e empurrado à sociedade, ao deboche, ao desprezo, a negligência e outras moléstias, além das que me oprimem por ofício.

Por fim, se aproximam os de Leipzig para a disputa com Eck. Acusam-me de ser imprudente por escrever que rejeitava e reclamam que cante a palinódia num escrito pessoal. Mas fui assegurado pelo duque George[10] de que eles haviam recusado antecipadamente e eu disse a eles em duas ocasiões que o seu decano havia recusado anteriormente a minha petição, como na realidade o fez. Desta maneira tão baixa quer esta gente impedir tal disputa; mas, o duque George continua urgindo-a.

Adeus, boníssimo padre. 20 de Fevereiro de 1519. Fr. Martinus Lutherus, agostiniano.


NOTAS:
[1] WA 1, pp. 344-345. Nota de Teófanes Egido.
[2] Johannes Staupitz para não se comprometer, associando-se de algum modo, com Lutero, evita inclusive responder as várias cartas enviadas por Lutero, em que o reformador alemão solicita conselhos, posicionamento e coerência com o evangelho que primeiramente ele viu em seu tutor. Veja nas outras cartas traduzidas os insistentes pedidos de resposta de Lutero. Nota do tradutor.
[3] Lutero se refere às Atas Augustana (WA 2, 1ss), onde narra a célebre entrevista com Cajetano (cf. Conversas à Mesa, n. 9-10 desta edição). Nota de Teófanes Egido.
[4] Sobre os contatos do legado de Miltitz e Lutero neste tempo e a desafortunada intervenção do primeiro, cf. a nossa introdução ao Tratado sobre a liberdade cristã, escrito 5 desta edição. Sobre a entrevista aludida por Lutero, cf. H. Boehmer, Der junge Luther, ed. de H. BornKamm, Leipzig 1952, pp. 207ss. Nota de Teófanes Egido.
[5] É interessante notar que Lutero usa uma linguagem apocalíptica condenatória contra a Igreja Romana, bem como contra ao papa. Nota do tradutor.
[6] Johannes Tetzel (1465-1519) pregador da indulgência que desencadeou o primeiro protesto público de Lutero em 1517 (veja as 95 Teses). Sobre a alusão da carta e o histórico do dominicano, cf. N. Paulus, Johann Tetzel der Ablassprâdiger, Mainz 1899, pp. 71ss. Nota de Teófanes Egido.
[7] Refere às teses impressas por Eck (WA 2, p. 154) com vistas à disputa que em Leipzig lhe enfretaria com Karlstadt e Lutero. Eck foi sem dúvidas o mais formidável e um dos melhores e mais preparados debatedores contra Lutero. Nota de Teófanes Egido.
[8] Os seus primeiros escritos latinos surgem editados em Outubro de 1518, na impressa de Froben (Basiléia), numa edição feita sema autorização de Lutero. Nota de Teófanes Egido.
[9] Silvestre Prierias (1456-1523), um dos primeiros rivais de Lutero, sem a grandeza de Eck. O livro Diálogo equivocadamente da capa do livro, cf. WA 1, p. 645. Nota de Teófanes Egido.
[10] O duque George Spalatino da Saxônia. Nota do tradutor.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), p. 377-378.

Tradução em 8 de Abril de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Contra os 32 Artigos dos teólogos de Lovaina

Escrito por Martinho Lutero em 1545[1]

Não oferecemos[2] este texto por seu valor intrínseco inexistente, mas, como uma amostra – e não das mais cruas – da atividade de Lutero no último ano de sua vida. Ele precipitou-se pelo furioso ataque, como demonstram os seus escritos contra o papado, o inacabado contra os asnos de Paris e Lovaina, etc. A sua preferência pela linguagem brusca não se percebe neste escrito, mas pode-se percebê-la.

A origem do panfleto ocorreu devido ao conhecimento das 32 Teses editadas pelos teólogos de Lovaine, sancionadas por Carlos V, em Março de 1545, e divulgadas nos Países Baixos contrapor a difusão da Reforma (cf. As Teses de Lovaina em WA 54, 416-422). No cenário de Wittemberg foi Melanchthon que primeiro pensou em dar uma resposta. Todavia, foi Lutero quem se encarregou disto com estas 75 teses, que apareceram no mês de Setembro, que estranhamente recordam – somente no título – as moderadas teses de 1517 que lhe lançaram na publicidade. Realmente, como escreveu García-Villoslada (Lutero II, 552-553),[3] refere-se a “o ocaso de um herói” nestes panfletos em que mesclam fobias, invectivas amargas, não sendo possível discernir se com bom humor ou ira (seguramente com ambas as coisas ao mesmo tempo).

EDIÇÕES: oferecemos esta tradução da versão latina, contrastada com a tradução alemã, segundo as edições: E var 4, 486-492 e E 65, 170-178; WA 54, 425-430; 430-443; CL 4, 392-398.[4]


As 75 teses de Lutero[5] contra os teólogos da Universidade de Lovaina[6]

1. É ímpio e enganoso tudo o que na igreja de Deus se ensina sem contar com o apoio da Palavra.
2. É ímpio e herético estabelece-lo como artigo de fé.
3. E se alguém crê [neste artigo][7] é um idólatra e, está rendendo culto ao diabo em lugar de rendê-lo a Deus.
4. Porque são Paulo sentenciou que as doutrinas dos homens estão em conflito com as de Deus.[8]
5. Os hereges e idólatras lovainenses afirmam, sem respaldo na Escritura, que são sete os sacramentos.
6. O batismo é um sacramento que deve ser administrado tanto aos adultos como aos meninos para a remissão dos pecados e para a salvação eterna.
7. Deve ser considerado como herética, todavia, a doutrina que a sinagoga dos [teólogos] de Lovaina sustentam acerca do batismo.
8. Condenamos como herético o espírito dos anabatistas, por rejeitarem a verdade do batismo ao condicioná-la aos vícios e à indignidade dos homens.
9. Porque da mesma forma, haveria que condenar ao magistrado e ao que prega a Palavra, por causa do pecado, e da indignidade pessoal. Isto seria pernicioso.[9]
10. Resulta estulto o raciocínio consequente: “o batizando não crê, ou é indigno; logo, será nulo o batismo administrado.”
11. Ainda que as premissas desta consequência em relação aos meninos sejam falsíssimas e temerárias,
12. Todavia, não é menos certo que os nossos rapazes nunca poderão rejeitar a esta seita, nem a nenhuma outra, se não forem baseados na doutrina e na erudição da Escritura.
13. E desta forma condenam sumariamente, ou seja, à espada e fogo, com a morte e o sangue dos cidadãos, segundo reza a Escritura: “os seus pés se apressa em derramar sangue."[10]
14. Estas são as armas espirituais de seu exército; desta maneira, não precisam dedicar-se ao estudo das Escrituras e podem continuar com a sua indoutíssima sofisma.
15. No venerável e adorável sacramento da eucaristia estão, se mostram e recebem real e verdadeiramente o corpo e o sangue de Cristo, tanto pelos que são dignos, como pelos indignos.
16. É condenável e abominável a doutrina dos ouriços lovainenses sobre o uso deste sacramento, já que está repletíssima de profanação, de heresia, e de idolatrias.
17. Para receber-lhe dignamente é necessária a fé, em virtude da qual se crê com firmeza na remissão dos pecados que Cristo promete e na vida eterna, como o dizem com clareza as palavras deste sacramento.
18. Sem motivo algum, sem apoio na Escritura, e somente por mera vaidade destes bandoleiros, se ensina a transubstanciação do pão e do vinho.
19. Roubar a outra espécie [o vinho] dos leigos, a quem o próprio Cristo confiou integro este sacramento, é um sacrilégio horrendíssimo e uma tirania satânica.
20. Neste sentido, a poça maldita dos [teólogos] de Lovaina se enfurece desumanamente contra a propriedade e as pessoas que não dependem deles, e o faz não somente de costas para a Escritura, como também, contra o expresso mandato de Deus.
21. Contra o que se inventa o furor dos lovainenses, não sancionou isto a igreja, posto que os leigos, que são a maior parte da igreja, se veem forçados a padecer esta violência perpetrada pelos enlodados homens péssimos e por uma escassíssima minoria desta igreja; melhor dizendo, por nenhum setor da igreja, senão que por parte de todos os diabos.
22. Não se apoia na Escritura a doutrina de que a missa é um sacrifício. E sendo que carece da autoridade das Escrituras, pode-se rejeitar com a mesma facilidade com que se aprova, por usar das palavras de são Jerônimo.[11]
23. É herético e blasfemo oferecer missas pelos defuntos, e estão cometendo soberanamente a imundícia dos [teólogos] de Lovaina quando afirmam que foi algo instituído por Cristo.
24. Cristo mandou esta comida e esta bebida para esta vida; mas, os mortos não comem, nem bebem.
25. Santo Agostinho não quis que seus livros, nem os de ninguém, se pusessem no mesmo plano de igualdade que as Sagradas Escrituras, nem que suas sentenças fossem aceitas como dogmas da fé.[13]
26. Como se explica a arrogância diabólica destes bandidos com os que não dependem deles, senão de Cristo, pelo que ousam fazer-nos equiparar as opiniões humanas e as suas com os artigos de fé, ou inclusive coloca-las acima destes?
27. Julgamos que os zwinglianos e todos os sacramentários são formalmente hereges e que estão fora da igreja, pois negam que na venerável eucaristia se recebe o corpo e o sangue de Cristo pela boca carnal;[14]
28. Não obstante, as refutações dos [teólogos] de Lovaina, sanguinárias e incendiárias, são mais próprias de um parricídio do que de uma erudição, erudição de que carecem totalmente enquanto se refere à Sagrada Escritura.
29. Por qual artigo herético vão refutar isso, que estão cheios e transbordando de heresias, blasfêmias e incontáveis idolatrias?
30. Não será da Escritura, senão que de doutrinas humanas de onde arrotam, vomitam e defecam numa igreja que não é sua, senão que é do Deus vivo.
31. Portanto, tomaram as fúrias de Lovaina para a igreja, habitação de Deus, por sua fossa particular; nela, como seus senhores, enchem de seu esterco com que a matam. Furor dos furores!
32. Que a confirmação seja um sacramento é algo que se afirma sem o apoio da Escritura, e mente o esgoto lovainense ao afirmar que foi instituída por Cristo.
33. Sabemos que os homens bons e piedosos nunca desejaram que, por ainda estar sujeitos à carne, se as suas sentenças fossem recebidas por dogmas, ou sacramentos e que, mesmo sendo advertidos, se expressaram de outra maneira.
34. Com satisfação confessamos que a penitência, junto com os poderes absolutos das chaves, é um sacramento. De fato, possuí a promessa e a fé da remissão dos pecados de Cristo.
35. Os [teólogos] de Lovaina, ao rejeitar a fé, são apóstatas, blasfemos piores do que os turcos, que os judeus e do que os pagãos.
36. A penitência ensinada pelos lovainenses, ou seja, a que consiste na contrição, confissão e satisfação, não é outra coisa que esse artefato do desespero de Judas, Saul e outros semelhantes. Portanto, deve ser condenada como herética.
37. Não sabem no que consiste a contrição, a confissão, a promessa ou a fé, nem se poderá aprender neste estrume e fossa dos lovainenses, porque tudo o que dizem carece de fundamento da Escritura.
38. Não há liberdade para o bem; dizer que com a ajuda da graça se pode tender para ele, não é mais do que sair pela tangente e responder escolasticamente ao que não se pergunta.
39. O rito de ordenar aos “míseros sacrificantes”, ou seja, aos crucificadores de Cristo, é uma confusão diabólica.
40. A ordem não é um sacramento; é somente um ministério e uma vocação dos ministros da igreja (1 Co 12),[15] e não possui a promessa da remissão dos pecados.
41. Essa vocação se realiza somente pela igreja, sem a necessidade de tonsuras, de unções e demais máscaras que a ousadia humana faz parecer como sagradas e necessárias.
42. A extrema-unção não é sacramento. Nem há necessidade de se dizer que não foi instituída por Cristo, contra os grunhidos de nossos garotos.
43. Constitui uma enorme impiedade e um tremendo ultraje perpetrado contra Cristo afirmar que uma coisa é sacramento, mas que, todavia, não se requer para a salvação.
44. Dizer que o matrimônio é sacramento carece de apoio na Escritura; nossos mestrinhos copiaram do Espelho de Marculfo.[16]
45. O matrimônio, na realidade, é uma instituição, um dom, uma ordenação divina, como o são o governo civil e os magistrados.
46. O Papa não tem nenhum poder – muito menos o terão estes brutos rapazinhos – para estabelecer ou nada definir referente às causas matrimoniais. Como o teriam, pois, dada a sua rudeza e sua ignorância?
47. É verdade que não há mais do que apenas uma igreja católica na terra; mas, não pertencem a ela os heréticos e idólatras lovainenses, nem o seu ídolo abominável, o Papa.
48. A igreja do Papa e destes mestrinhos é exatamente uma alcateia, inimiga sanguinária e devastadora da igreja de Cristo.
49. Os [teólogos] de Lovaina precisam usar da intimidação, pois eles são uns porcos gordíssimos de Epicuro e totalmente ateus, visto que a ousadia e a forma desavergonhada com que mentem e blasfemam diante de Deus e dos homens.
50. A sua própria consciência lhes é testemunha de que o papado não somente carece do respaldo da Escritura, senão que foi introduzido na igreja contra a Palavra.
51. Além do mais, temos a realidade que contra o que tão desavergonhadamente afirmam os encapuzados lovainenses, comprova que o Papa jamais foi a cabeça da igreja universal.
52. O que dizem em seu artigo 21 e nos oito seguintes é perfeitamente “marcólfico”; além de ser blasfemo e idólatra, somente é visível no Espelho de Marcolfo.
53. Quanto aos defuntos e ao purgatório, quão convencidos estão estas aves de rapina de que os que ontem caíram do céu em breve sairão do inferno!
54. E uma vez que tenham rejeitado a Escritura e tomem por sua conta licença para converter em dogmas os sonhos e vaidades humanas, não têm mais limites, nem fim seus artigos de fé.
55. Os votos, primordialmente os monásticos e o celibato, são invenções humanas sem respaldo nos mandamentos, nem na Palavra de Deus; são de fato um abismo de perdição.
56. O que se compromete com voto, comete falácia e hipocrisia, de onde derivam frutos tão dignos desta religião como o são o pudor, a santidade, a piedade de Roma e das suas associações.
57. De forma que são mais castos as prostitutas de bordéis e os prostíbulos das meretrizes que os da Sodoma romana e os da Gomorra dos monastérios.
58. A sua pobreza equivale à rapina de toda a terra e as riquezas do mundo, conforme está escrito: “Aqui é onde os pecados obtiveram riquezas abundantes neste mundo.”[17]
59. Não possuiriam tudo isto se não fossem ventres heréticos, idólatras e blasfemos.
60. A obediência consiste em fazer o que agrada principalmente ao nosso mestre, que é o Senhor da igreja, e a quem estão submetidos os reis.
61. São Pedro e são Paulo entenderam a liberdade evangélica como uma libertação não somente do pecado e da morte, mas também das cargas estabelecidas na lei mosaica e, consequentemente, e com maior razão, livre do esterco das tradições e opiniões humanas.
62. Mas serão declarados, e com razão, como hereges pela insigne faculdade, já que não foram “coroados” por Lovaina, nem conheceram a seu Marcolfo.
63. A fé pela qual se convence de que os pecados lhe foram perdoados por Cristo, ela é necessária em tudo, bem como o sacramento em toda a Palavra.
64. É mui sútil e próprio dos “mestrinhos” o que a insigne universidade dos lovainenses afirma, ou seja, que a tese anterior se opõe às Escrituras.
65. E é que neste caso concreto a sua escritura significa estes três sacramentos dos rapazinhos: o hábito, a batina e o capuz.
66. Este tipo de escritura se opõe a fé; pois bem, eles são mestres nesta escritura da qual extraíram e concluíram os seus 32 artigos.
67. Talvez, prefiram que os pecados se remetam baseados na incredulidade e por Belzebu, o príncipe dos demônios.
68. Aqui vemos com toda clareza que as bestas lovainenses simplesmente rejeitaram a religião cristã e que são em seu coração uns perdidíssimos pagãos.
69. Uma coisa apenas eles fazem bem feito, é que uma vez rejeitando a Cristo, para não serem ateus por completo, inventam novos deuses, invocam aos mortos, sem importar-lhes que sejam santo, ou não.
70. Não lhes intimida que por justo juízo de Deus – cuja palavra despreciam e blasfemam – cada povo terá os deuses que mereça;
71. De forma que podem ser ridicularizados como o fez Elias: “Gritem mais, pois talvez lhes atendam; são deuses, estão tagarelando, terão algum assunto ou por acaso estão de viagem, ou talvez, dormindo.”[18]
72. Com que grosseria e com que infâmia eterna vocês desfiguram o nome claríssimo e o tempo do imperador Carlos, príncipe de tantos povos, ao querer insinuar que confirmaram estas suas sacrílegas e satânicas monstruosidades!
73. Não compete aos reis, ou príncipes confirmar a doutrina verdadeira, senão que submeterem-se a ela e servi-la, como declara o Salmo 2: “E agora, reis, escutem: aprendam, juízes da terra.”[19]
74. Muito menos será sua competência confirmar ou defender os dogmas ímpios, blasfemos, idólatras; pelo contrário, terão que combater e condena-los com a igreja.
75. Portanto, meu irmão cristão, por este exemplo misérrimo dos [teólogos] de Lovaina, aprenda a desconfiar da doutrina dos homens e atender com mais diligência às Sagradas Escrituras.

Declarei estas teses, e com a ajuda de Deus, direi muitas outras coisas.[20]


NOTAS:
[1] Os teólogos da Universidade Católica de Lovaina [em francês Université Catholique de Louvain] está na cidade de Lovaina, na Bélgica, fundada em 1425. O próprio brasão desta instituição ostenta a insígnia em latim Universitas Catholica Louvainensis sedes sapientiae [a Universidade Católica de Lovaina é a sede do saber]. Toda a cidade, ainda hoje, se estrutura em torno desta universidade. As 32 Teses de Lovaina podem ser lidas na edição alemã das obras de Lutero da WA 54, 416-422 e as 75 teses refutando estão na WA 54, 425-443. Nota do tradutor.
[2] Esta nota introdutória foi escrita por Teófanes Egido. Nota do tradutor.
[3] Martinho Lutero, “Debate para o esclarecimento do valor das indulgências” in: Obras Selecionadas (São Leopoldo/Porto Alegre, Editora Sinodal & Concórdia Editora, 1987), vol. 1, pp. 21-29. Também publicado em Martinho Lutero, Pelo evangelho de Cristo (Porto Alegre/São Leopoldo, Concórdia Editora Ltda & Editora Sinodal, 1984), pp. 33-43. Comumente conhecidas como As 95 Teses. Nota do tradutor.
[4] Este historiador católico nota que “a faculdade teológica de Lovaina, em Março de 1545, desejando prevenir aos pregadores populares contras as doutrinas dos inovadores, publicou, com aprovação de Carlos V, uma série de teses católicas acerca dos sacramentos, da fé, do pecado original, o livre arbítrio, a justificação, a missa, o primado romano, o culto dos santos. Foram redigidas em latim, francês e neerlandês.” Ricardo García-Villosalada, Martín Lutero – En lucha contra Roma (Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2008), vol. 2, p. 553. Nota do tradutor.
[5] Lucien Febvre elucida quanto às obras de Lutero escrevendo que “existem sete edições. Na prática, atualmente só contam as duas últimas, ditas de Erlangen e de Weimar. A edição de Erlangen, in-oitavo, a mais difundida, compreende: a) 67 volumes de obras em alemão [...]; b) 33 volumes de obras em latim [...]. A edição de Weimar, Dr M. Luthers Werke, Kritische Gesamtausgabe, v.I, 1883, vai comportar cerca de 80 volumes in-quarto. Cara, de difícil manejo (falta de índices parciais, índices gerais ainda não estabelecidos), ainda é pouco difundida fora da Alemanha. Confiadas a especialistas, as obras se apresentam em ordem cronológica. Lucien Lebvre, Martinho Lutero, um destino (São Paulo, Editora Três Estrelas, 2012), pp. 345-346. Nota do tradutor.
[6] Os embates com os teólogos de Lovaina tiveram origem bem cedo. Estes teólogos católicos em 7 de Novembro de 1519, condenaram 26 de suas 95 teses, declarando serem elas “asserções falsas, escandalosas, heréticas e heresias palpáveis.” Marc Lienhard, Martim Lutero – tempo, vida e mensagem (São Leopoldo, Editora Sinodal, 1998), p. 66. Em 1520, em resposta a censura sentenciada por Lovaina, ele escreve a Responsio Lutheriana ad condemnationem per Magistros Nostros Lovainienses et Colonienses factam [Resposta de Lutero às condenações feitas pelos Nossos Mestres de Lovaina e da Colônia] (WA 6, 181-195). Nota do tradutor.
[7] Título acrescentado. Estas teses estão entre os últimos escritos de Lutero. A crítica comumente feita, e possuí algum nível de verdade, é que ele foi mais agressivo do que instrutivo. Neste texto o reformador alemão, não oferece nenhum insight teológico novo, nem refuta com elaborados argumentos teológicos as teses dos teólogos de Lovaina, em geral, mantém a aspereza e expressões de ofensa ad hominem. Entretanto, deve-se considerar o método de argumentar por meio de teses, comum naqueles dias, e que tinham o propósito de resumir e denunciar doutrinas, para que fossem debatidas oportunamente. Quanto à linguagem, é fato, que Lutero a usava de modo grosseiro e ofensivo, em parte, devido ao seu temperamento, entretanto, também por causa do seu zelo pela Escritura. Nota do tradutor.
[8] Para completar e tornar a afirmação da tese mais clara foi necessário o acréscimo de algumas palavras. Todavia, os acréscimos estão identificados entre colchetes, e podem ser avaliados, se fazem justiça à sentença, realmente transmitindo a ideia do reformador. Nota do tradutor.
[9] Conforme Tt 1:14. Nota de Teófanes Egido.
[10] Aqui Lutero responde à objeção anabatista que negava a validade do batismo, condicionando-a à piedade pessoal do ministrante. Ele levanta uma discussão que perduraria até o século XVII. Os teólogos de Westminster, respondendo acerca da dignidade do ministrante do batismo, declararam que “a graça significada nos sacramentos ou por meio deles, quando devidamente usados, não é conferida por qualquer, poder neles existentes; nem a eficácia deles depende da piedade ou intenção de quem os administra, mas da obra do Espírito e da palavra da instituição, a qual, juntamente com o preceito que autoriza o uso deles, contém uma promessa de benefício aos que dignamente o recebem (Rm 2:28-29; 1 Pe 3:21; Mt 3:11; 1 Co 12:13; Lc 22:19-20; 1 Co 11:26).” Veja em Confissão de Fé de Westminster XXVII.3. Nota do tradutor.
[11] Conforme Rm 3:15. Nota de Teófanes Egido.
[12] Comment. in Matthaeum, lib. 4, cap. 23 (ML 26, 73). Nota de Teófanes Egido.
[13] Epistolae, 82, cap. 1 (ML 33, 277). Nota de Teófanes Egido.
[14] Lutero ataca aos que não coincidem com ele na interpretação da presença de Cristo na eucaristia, preferencialmente, aos protestantes do círculo de Zwingli. Nota de Teófanes Egido.
[15] Conforme 1 Co 12:4. Nota de Teófanes Egido.
[16] Marcolfo ou Marculfo, monge francês, autor de formulários diplomáticos. Também na idade média era conhecido por este nome um suposto bobo da corte de Salomão. Lutero se refere ao autor de Speculum, mas, a sua estranha identificação se encontra numa dose de ironia. Nota de Teófanes Egido.
[17] Conforme Sl 72:12. Nota de Teófanes Egido.
[18] Conforme 1 Rs 18:27. Nota de Teófanes Egido.
[19] Conforme Sl 2:10. Nota de Teófanes Egido.
[20] Lutero rascunhou outra resposta aos teólogos de Lovaina sob o título de Contra os asinos Parisienses Lovainiensesque [Contra os asnos de Paris e de Lovaina] (WA 54, 447-458). Um mês antes de sua morte, em 16 de Janeiro de 1546, Lutero escreve a Amsdorf “ego exerceo me scribendo contra asinos parisienses lovanienses ” [eu pratico a minha escrita contra os asnos parisienses e lovainenses]. Todavia, o texto infelizmente ficou incompleto. Ricardo García-Villosalada, Martín Lutero – En lucha contra Roma, vol. 2, p. 553. Nota do tradutor.


Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), pp. 358-363.

Esta tradução dedico respeitosamente ao Rev. Renato Hoerlle, um fiel ministro, que zela pela ortodoxia luterana e pelo pastoreio das ovelhas sob seu cuidado.

Tradução e notas em 13 de Fevereiro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.

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