(1)
1. Muito se expôs acerca da pessoa e do ofício medianeiro de Cristo. O seu status é a condição na qual Cristo o Deus-homem realizou o seu ofício de mediador.
2. Esta condição é tanto de humilhação como de exaltação.
3. A condição de humilhação [exinanitio seu humilitas] é aquele pelo qual, embora ele esteja em forma de Deus, ele assumiu a forma de um servo, obedecendo o Pai, em nosso nome [pro nobis], morreu, foi sepultado e desceu ao inferno.
4. Assim sendo, ele agiu em seu ofício profético, sacerdotal e real, em seu status, como alguém que teve além de si a forma e glória de Deus. A sua deidade não se perdeu, mas esteve oculta na forma de servo que ele assumiu. Apesar da deidade de Cristo ser visível até mesmo no estado de humilhação, especialmente em seus milagres, isto foi pouco considerado quando comparado com a sua plena revelação em sua exaltação.
5. Ele realizou o ofício profético em seu estado de humilhação, não somente de modo indireto, ao enviar o seu precursor João Batista, e chamando os apóstolos, mas também diretamente, proclamando a verdade celestial com grande perseverança, entendimento e eficácia, tanto pelo ensino como pela realização de milagres, para o rebanho perdido; que é Israel.
6. Ele realizou o ofício sacerdotal em seu status prestando plena satisfação a nosso favor e, ao interceder por quem está em desvantagem.
7. A satisfação de Cristo é o ato pelo qual ele nos livrou da maldição e restaurou-nos a vida eterna, colocando-se em sujeição à lei em nosso lugar [nostro loco], submetendo-se a maldição devido aos nossos pecados e cumprindo perfeitamente o que era exigido de nós pela lei.
8. Assim, ela consiste tanto de suportar a punição e a perfeita justiça. No primeiro caso, a passiva obediência é especialmente percebida; na segunda, a obediência ativa. Adiciono a esta qualificação: Não precisamos firmar uma diferença tão rígida da obediência passiva e ativa, de modo que o desdobramento da punição seja somente na obediência passiva, e a perfeita justiça somente na ativa. Nem há uma diferença temporal, pois ambas se estendem desde o início da encarnação até a sua morte. Nem diferem no sujeito, pois a ativa e a passiva são a mesma obediência em diferentes aspectos, de modo que a obediência de Cristo é igualmente ativo sofrimento e ato passivo; tanto quanto o sofrimento da punição que é recebido é chamado de passivo, mas e do mesmo modo ele é um testemunho para o seu supremo amor, ele também pode ser chamado ativo. Nem é a divisão da obediência em ativa e passiva uma divisão em partes, mas meramente uma distinção baseada numa finalidade em vista; deste modo, a dupla satisfação objetiva a punição e a vida eterna. A advertência com uma maldição sobre os transgressores (Dt 27:26) produz o primeiro [isto é, a punição]; a promessa da vida eterna sob a condição de perfeita obediência e justiça (Lv 18:5) requer a segunda. Por isso, por analogia, podemos dizer que, pela simples e absoluta perfeição da satisfação, somos livres da punição porque ele suportou o sofrimento por nós, e deu o privilégio [ius] da vida eterna, pois ele cumpriu plenamente a lei em nosso lugar.[1]
9. O submisso sofrimento é o ato pelo qual ele recebeu sobre si a punição merecidamente nossa, e também ofereceu a si à Deus em nosso favor [pro nobis] como uma santa vítima.
10. Isto consistiu tanto em seu sofrimento diante de sua grande e final paixão, e também, mas especialmente, daquele sofrimento final.
PROPOSIÇÕES
I. Nenhum parte da paixão de Cristo deve ser excluída da satisfação de Cristo. A razão é que ele não sofreu por si mesmo [pro se], mas tudo foi em nosso lugar [nostro loco].
II. Por isso, aqueles inumeráveis sofrimentos que Cristo sujeitou-se antes de sair de Jerusalém, não podem ser separados do preço da redenção. Apesar de que eles podem ser chamados de preparação, precedendo a paixão final, todavia, eles são uma parte que integra a sua satisfação. Do mesmo modo, não pode ser negado que, um pagamento de uma centena florins por alguém que deve alguns toneladas de ouro, é um genuíno pagamento com respeito ao total e principal, embora ele seja insignificante.
III. Mas a Escritura se refere àquela paixão final e morte de Cristo como o preço da redenção, pela sinédoque e por excelência, e como sua entrega de si sobre o altar da cruz como um sacrifício, vítima e oferta expiatória (Hb 9 e 10).
V. A principal causa eficiente desta paixão é a Santa Trindade; os agentes são os inimigos de Cristo entre judeus e gentios.
V. A pessoa que sofreu por nós, não foi o Pai, nem o Espírito Santo, mas o Filho de Deus.
VI. Apesar disso, pode-se dizer corretamente que Deus sofreu, todavia, a divindade [divinitas] não sofre. Deus sofreu em carne, mas não com a carne.
VII. Há diferentes espécies de sofrimentos da parte de Cristo, que são em três classe: aqueles antes de sua morte, a própria morte, e aqueles após a morte.
VIII. Aqueles antes da sua morte são tanto internos como externos.
IX. Os sofrimentos internos são a tristeza, a angústia e a dor que surgiram da amargura da ira divina e o conflito com a tentação do desânimo e a solidão, bem como todo o sangue e suor, do qual aquele lamentoso clamor “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste” deu expressão.
X. Apesar disso, ele se suportou a tentação para vencê-la, não se desesperando, mas a sua firme fé [fiducia] triunfou em Deus. O inatacável argumento para isto é que no auge de sua agonia ele não cessou de clamar a Deus, o seu Deus.
XI. Os sofrimentos externos são as torturas do corpo, que ele suportou em todos os seus membros e em todos os seus sentidos. A sua cabeça foi coroada com espinhos, bateram nele com uma vara, a sua face foi agredida com saliva e ferida com golpes, os seus ouvidos ofendidos pela zombaria e reprovação, os seus olhos afligidos pelo sofrimento de seus discípulos e sua mãe, a sua língua secou de sede e atormentada com vinagre e ardor, o seu corpo suportou a nudez e os rasgos do chicote, e então, com as mãos e pés pregados, colocado sobre uma cruz, posicionado entre ladrões, com os tendões de seu corpo esticados com toda a força, teve o seu lado perfurado por uma lança.
XII. A sua morte não foi de natureza ordinária, mas foi especialmente amaldiçoada. De fato, a cruz se tornou assim, desde a antiguidade, pelo oráculo de Deus (Dt 21:22: “Maldito aquele que for pendurado no madeiro”).
XIII. A união hipostática não foi destruída na morte de Cristo. A alma apartou-se do corpo, mas nenhum deles separou a hipóstase do Filho de Deus.
XIV. Os sofrimentos consequentes à sua morte, que apesar deles não promoverem a dor, envolvem a desgraça, são o sepultamento de Cristo e os três dias confinado num sepulcro.
XV. O sepultamento é aquela parte do suportar do sofrimento, pelo qual o corpo de Cristo esteve colocado num sepulcro, segundo era o costume de preparo de qualquer cadáver.
XVI. Os três dias de confinamento no sepulcro é o estágio final da humilhação, pelo qual, onde a sua alma recebida no paraíso, o seu corpo foi detido nas amarras e escravidão da morte, enquanto os seus inimigos regozijavam-se, como se ele estivesse realmente vencido e consumado pelo ato (At 2:24: “Deus ressuscitou, rompendo os guilhões da morte”).
XVII. Pode-se questionar aqui acerca do quarto artigo do credo. Quando se diz que Cristo desceu ao inferno, e como entender aquelas palavras como parte da paixão de Cristo? O relato da [igreja] romana acerca de Cristo descer ao local ao limbo dos pais, e a sua liberação, é obviamente mítico e absurdo. Não faz nenhuma relevante diferença ao ensino daqueles que supõe que Cristo entrou no inferno, de modo que ele viesse triunfar como vitorioso. Estas opiniões são contrárias à história do evangelho. Apesar de Cristo, por causa de sua divindade, pudesse sem especial circunstância, estar em qualquer lugar, todavia, ele encomendou a sua alma ao seu Pai enquanto estava pregado sobre a cruz e o seu corpo colocado num sepulcro; assim, é falso dizer que Cristo desceu ao inferno como um lugar [localiter]. Além disto, Deus se nomeia “Deus dos Pais” muito antes de sua morte (Êx 3:6), por isso, nada seria mais absurdo do que supor que as almas dos pais estavam detidas no limbo. Pedro declara (1 Pe 3:19) que Cristo pregou aos espíritos que no passado eram desobedientes. Isto precisa ser entendido daquela pregação que Noé fez antes do dilúvio, que foi instruído o propósito pelo espírito de Cristo. Nem se deve iludir que há algum fundamento para um triunfo de Cristo no inferno, porque ele não venceu antes da ressurreição, e por isso o seu triunfo ocorreu no céu e não no inferno. Além disso, mesmo que a palavra “Sheol”, por vezes, signifique sepultura, e noutros usos signifique inferno, ou lugar de condenação, a frase “desceu ao inferno” tem vários sentidos na Escritura. Um significado é “ser sepultado” (Sl 16:10: “Não deixarás a minha na morte”). Outro é “cair em terrível tormento e angústia” (1 Sm 2:6: “O SENHOR é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz subir”; Sl 18:5: “Cadeias infernais me cingiram”). E um terceiro, às vezes, ela descreve o estado daqueles que venceram e minimizam a morte (Sl 49:14: “Este é Deus, Deus para todo o sempre; ele será o nosso guia até a morte”; veja também Is 14:11ss). O primeiro dos significados citados acima não se aplica ao quarto artigo do credo; num breve compêndio da fé não é aceitável que, quer pela repetição, ou a explicação, uma declaração perfeitamente clara seja substituída por uma obscura. O segundo significado aparece improvável, pois a ordem das sentenças que parecem implicar naquilo, foi antes de sua morte, quando Cristo suportou os terríveis tormentos e angústias. Mas Calvino[2] esclarece ao mostrar que a sequência não é temporal, mas na ordem da realidade; o artigo tem duas partes, um relacionado com os sofrimentos do corpo, e o outro com os da alma. Aqueles que aplicam o terceiro significado aqui, especialmente argumentam a questão da ordem da realidade, pois a permanência de Cristo na sepultura é o estágio final da humilhação, e por isso, os estágios de sua formosa exaltação contrastam com os sofrimentos neste processo: a ressurreição contrasta com a morte, o sepultamento com a ascensão e a descida ao inferno com o assentar à destra do Pai. Esta última doutrina não deve ser condenada, mas a prévia [de Calvino] não deve ser rejeitada levianamente. Acima de tudo, não parece correto promover uma amarga controvérsia sobre este artigo, pois a cláusula acerca da descida de Cristo ao inferno não foi incluída no quarto artigo, como pode-se provar desde o Credo Niceno e muitas outras fontes. Somente isto permanece vital: que nenhum sofrimento espiritual da alma, nem os três dias na sepultura sejam separados dos sofrimentos de Cristo.
XVIII.Quanto à forma ou modo da paixão de Cristo, o seu sofrimento foi (1) verdadeiro, (2) santo e inocente, e (3) voluntário. A prova destes três é como segue: A menos que ele realmente tenha sofrido, doutro modo, não existe satisfação pelos nossos pecados. Se ele não sofreu como uma pessoa santa e inocente, não temos um perfeito sacerdote (Hb 7:26). Se ele não se submeteu voluntariamente à maldição, o seu sacrifício foi forçado. Acerca disto, Hb 10:7 diz: “Eis aqui estou, para fazer, ó Deus, a tua vontade”.
XIX. O propósito da paixão de Cristo é a revelação da glória de Deus, e especialmente, de sua ira contra o pecado, e de sua justiça misericórdia; bem como da revelação da natureza divina e humana. O propósito especial e distintivo [proprius] é a satisfação de nossos pecados.
XX. É necessário usar a analogia a fim de entender o propósito e o uso de alguma forma particular de sofrimento [de Cristo]. A expiação pode ser comparada ao pecado, e o sofrimento à punição submetido por nós. Por exemplo, ele suportou os mais intensos sofrimentos na alma, tanto que ele pode expiar os pecados da alma e do corpo, sendo capaz de nos libertar do sofrimento eterno, tanto espiritual como físico, que de outro modo, deveríamos suportar. A sua morte esteve sob tal maldição, isto é, a crucificação, que em parte, ele pode expiar os pecados pelos quais merecemos ser amaldiçoados, e que, em parte, ele pode nos livrar livrar-nos desta maldição e condenação. Ele foi sepultado, podendo testemunhar que os nossos pecados foram sepultados com ele, de modo que, ele pode santificar o sepulcro como um lugar de descanso, no qual, de outro modo, seríamos detidos como numa prisão. Os três dias na sepultura ensinam que os nossos pecados nos fazem merecer sermos dominados pela morte eterna, a não ser que esta vergonhosa detenção, também tenha sido satisfeita por aquela punição.
XXI. Aqueles que ensinam que a paixão de Cristo foi meramente foi-nos dada como um exemplo, destroem o propósito e resultado desta paixão.[3] É verdadeiro que Cristo, pelo seu sofrimento, deu-nos um exemplo, mas primariamente o resultado desta paixão é a satisfação pelos nossos pecados. Os socinianos reconhecem a Cristo como salvador somente no seguinte sentido: (1) que ele proclamou a verdade celestial; (2) que ele a confirmou; (3) que ele deu o exemplo desta paixão e ressurreição; (4) que ele conferiu a vida eterna.[4] Quando as palavras da Escrituras, que declaram que Cristo morreu por nós, e usadas contra eles, eles tentam escapar a sua força pela explicação da preposição “em favor de” [pro] como significando “em nome de” [propter]; ou seja, que Cristo morreu em nosso favor, ou por nosso bem-estar, mas não em nosso lugar [nostro loco]. Os seguintes argumentos refutam esta perniciosa heresia: (1) Cristo morreu por nós, de modo que, deu a sua vida como pagamento pela redenção de muitos (Mt 20:28). Ele se entregou como “resgate por todos” (1 Tm 2:6). Dele é dito que redimiu-nos com o seu precioso sangue (1 Pe 1:18-19). Então, quem não sabe que uma coisa é dar exemplo, e outra é pagar pelo preço da redenção de alguém? Como alguém pode resgatar por um preço a menos que satisfaça por um pagamento legal, e fique no lugar do devedor?[5] (2) Porque ele morreu por nós, fazendo-se pecado por nós (2 Co 5:21), do mesmo modo que, ele recebeu os nossos pecados sobre si, e suportou a punição que era nossa (Is 53:4). Como alguém pode receber a transgressão de outro sobre si e suportar a punição que mereceu como sendo apenas um exemplo? Não seria mais um caso de ser punido e prover satisfação em seu lugar? (3) Se os sacrifícios do Antigo Testamento foram oferecidos por sacerdotes no lugar do povo, então, igualmente o sacrifício de Cristo é realizado no nosso lugar. A primeira premissa é verdadeira; então, a segunda é verdadeira. Os [socinianos] declaram ousadamente que em nenhum lugar na Escritura existe onde a preposição “por” seja equivalente para “em lugar de”. Mas como alguém pode falhar em perceber o significado nos seguintes textos: Jo 10:11: “O bom pastor dá a sua vida por suas ovelhas”; que é lutar até a morte no lugar de suas ovelhas; Rm 5:7: “Dificilmente, alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer”; Rm 8:6: “O Espírito intercede por nós”; Rm 8:31: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”; Rm 9:3: “eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas”; Nem pode-se argumentar que a paixão de Cristo é inadequada como o preço do resgate, e que a punição que merecemos pelos nossos pecados é eterna, do mesmo modo que os sofrimentos de Cristo não foram eternos. Embora estes sofrimentos ocorreram no tempo, eles têm o mesmo valor que um sofrimento eterno, porque ambos têm a infinita majestade e dignidade da pessoa de Cristo, e por causa da infinita importância e magnitude do sofrimento e a aflição da ira divina, para suportar o que o mundo inteiro e todas as criaturas eram inadequadas.
XXII. Os papistas negam completamente esta satisfação de Cristo acrescentando a outros sacerdotes e introduzindo a idolatria da missa no lugar [pro] do sacrifício. Eles são refutados por estes incontestáveis argumentos: (1) Há um mediador (1 Tm 2:5). (2) Paulo fala de somente um sacerdote (Hb 7:26: “nos convinha um sumo sacerdote como este”). (3) A declaração de haver apenas uma oferta (Hb 7:27, 9:25, 10:10, 14, 18).[6] (4) Se o sacerdócio do Antigo Testamento foi abolido porque os antigos sacerdotes eram meros homens, então, somente o Filho de Deus, no Novo Testamento, adequa-se como um sacerdote (Hb 7:28: “Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramento, que foi posterior à lei, constitui o Filho, perfeito para sempre”). Eles foram a exceção para esta conclusão pelo fato de Cristo ser o sumo sacerdote, enquanto eles eram assistentes e até certo ponto agentes de Cristo. [Em resposta dizemos que] eles ofereceram o mesmo sacrifício que Cristo ofereceu sobre a cruz, ou outro. Se eles ofereceram um outro sacrifício, ele é inapropriado, pelas razões dadas acima. Se ele é o mesmo, então resultam nas seguintes conclusões absurdas: (1) Cristo se oferece para si mesmo, então eles ofereceram [sacrifícios] por si mesmos. O sumo sacerdote e seus assistentes fizeram a mesma coisa, embora de diferentes modos. (2) Eles se classificaram entre os executores que pregaram Cristo na cruz. (3) Sendo o sacerdote e a vítima um só no sacrifício de Cristo, eles são vítimas, num sentido secundário. Em nenhum momento importante se faz a distinção entre o sacrifício com e sem sangue. De acordo com esta distinção, e contrário à evidência acima, não há sequer um [unicus] sacrifício e remissão dos pecados que podem ser encontrados por meio de um sacrifício sem sangue, o que o apóstolo expressamente nega (Hb 9:12).
XXIII. Enquanto a paixão de Cristo é minimizada pelos erros antecedentes, os que ensinam que ele morreu por todos os seres humanos [pro omnibus et singulis] estendem o objeto de sua paixão mais do que é admissível. De fato, se levarmos em consideração a magnitude e dignidade do mérito, admitiremos que ele seria suficiente para a redenção de dez mundos; mas se considerarmos o plano de Deus e a intenção de Cristo, então é falso dizer que Cristo morreu por todas as as pessoas. Por esta razão alguns dizem que a sua morte foi suficiente a todos, mas não eficiente para todos; ou seja, o mérito de Cristo, por causa da sua dignidade, é suficiente para todos, mas ele não é eficiente para todos em sua aplicação, porque Cristo não morreu com a intenção de que a sua morte fosse aplicada à todos. Por que deveria ele deveria morrer por aqueles por quem ele não poderia orar? Ele nos fala que não orou pelo mundo (Jo 17:9). Aqueles que se opõem a nós, argumentam a partir de passagens que fazem referência a todo mundo, ou à todos os homens, 1 Tm 2:4 e 1 Jo 2:2, em que todos os homens são mencionados de modo geral. Mas em 1 Jo 2:2 o significado de “o mundo todo” é, por metonímia,[7] “e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas ainda pelos do mundo inteiro”, e em 1 Tm 2:4 “todos os homens” significa de toda sorte, sendo gentios ou judeus, reis ou cidadãos comuns, e não apenas indivíduos numa classe, mas classes de indivíduo, como as palavras que seguem esclarecem. A palavra “todos” é usado no mesmo sentido em Gn 6:19 e Jl 2:28.[8]
1. O outro aspecto da satisfação de Cristo é a perfeita justiça que, pela sua conformidade com a lei e a perfeita obediência que ele realizou, adquiriu-nos o status de herdeiros da vida eterna.
2. Esta justiça é parcialmente original e parcialmente atual.
3. A justiça original de Cristo é a conformidade com a lei em que ele foi concebido e nascido.
(2)
PROPOSIÇÕES
I. A justiça original é oposta ao pecado original.
II. Ela não é somente inocência, ou liberdade do pecado, mas também uma aptidão e inclinação para o bem, assim como o pecado original não é somente ausência da justiça, mas também uma inclinação para o mal.
III. A justiça original de Cristo é parte da satisfação que ele realizou por nós. As razões são: (1) A lei requer não somente obediência atual, mas total conformidade com ela; de outro modo, a corrupção original não poderia ser pecado. (2) Por isso, todas as coisas acerca de Cristo são nossas, e tudo o que ele produziu, fez, esteve e produziu, ele o fez e esteve em nosso lugar.
IV. A justiça atual de Cristo é a obediência pela qual, em seu próprio ato, ele cumpriu a lei com absoluta perfeição. Nos estudos de teologia isto é chamado de obediência ativa.
PROPOSIÇÕES
I. Assim como a paixão de Cristo é necessária para a expiação do pecado, do mesmo modo a sua obediência ativa e justiça são necessárias para obter a vida eterna. As razões são: (1) A lei nos vincula tanto com a punição como com a obediência. Sob punição, porque ela coloca uma maldição sobre aqueles que não cumpriram-na em todas as palavras da lei (Dt 27:26). Sob obediência, porque ela promete a vida somente àqueles que guardam-na completamente (Lv 18:5: “Os meus estatutos e os meus juízos guardareis; cumprindo-os, o homem viverá por eles”; Lc 10:28: “Faze isto e viverás”). A distinção entre justiça legal e evangélica não invalida esta declaração, pois o evangelho, em Cristo, exibe a mesma justiça que a lei exige. (2) Esta dupla satisfação corresponde à nossa dupla miséria; isto é, a culpa do pecado e a condenação, e a ausência da justiça (Rm 3:23: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus”). (3) Justiça, na verdade e preciso significado da palavra, consiste da atual obediência (Dt 6:25: “Será por nós justiça, quando tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos perante o SENHOR, nosso Deus, como nos tem ordenado”). (4) Cristo cumpriu esta obediência atual tanto por si, como em nosso lugar [nostro loco]. Mas ela não foi para si; por isso, ela foi em nosso lugar. Isto é evidente da relação de Cristo conosco. Tudo o que ele foi, ou fez, no curso de sua completa obediência, ele foi e fez em nosso lugar. [Alguns teólogos] questionam esta declaração com base que somente a obediência passiva de Cristo contribui para a satisfação e mérito. Eles garantem que a obediência ativa teve um lugar em nossa redenção e salvação, mas somente como algo requerido [de Cristo] e necessário para a sua obra. Ela foi exigida por duas razões: a lei da criação e a necessidade para o seu sacrifício ser aceitável à Deus e para que fosse um santo sacerdote. O primeiro elemento nesta concepção é falsa porque em seu ponto, Cristo não deve ser comparado com outros homens, mas, apenas como o Filho de Deus que se tornou uma criatura não para sua glória, mas para a nossa, assim também ele se sujeitou à lei não para a sua glória, mas para a nossa. O segundo elemento no conceito acima confunde santidade ou inocência com obediência ou justiça atual, que difere menos do que faz privação [privatio] e [positiva] disposição [habitus]. Inocência é uma condição necessária para o sacrifício de Cristo, mas a obediência atual não é uma condição necessária de Cristo como um sacerdote, mas também uma parte de sua satisfação e mérito. Se a desobediência atual de Adão é uma causa da merecida condenação, por que não é a obediência atual do segundo Adão uma causa de merecida salvação? A conclusão que rejeitamos poderia apenas ser possível se estivéssemos dispostos a dizer que o primeiro Adão é mais importante para a nossa condenação do que é o segundo para a nossa salvação.
II. O mandamento do Pai, que Cristo obedecesse, foi tanto especial como geral. Ela foi especial com respeito ao seu propósito, no qual ele obedeceu não por si, mas por nós. Ela foi geral com respeito ao objeto: ele se submeteu à mesma lei que foi prescrita para nós, e em todos aqueles assuntos que a lei nos obriga. Aqueles que ensinam que somente a obediência passiva de Cristo foi mérito, mantém que a sua obediência foi apenas para um mandamento especial do Pai para morrer por nós. Todavia, isto não foi um mandamento especial, mas parte do mandamento; de fato, a obediência de Cristo estende-se à todas as exigências da lei. Por isso, desde que a lei impõe-nos tanto a punição como a obediência, ele satisfez cada uma de suas exigências.
III. A vida eterna pode ser considerada em si como uma participação da plenitude da alegria celestial; ou, como o oposto à condenação, que é, a libertação da condenação. No primeiro sentido, a causa da vida eterna é a perfeita justiça de Cristo; no segundo sentido ela é o seu suportar da punição.
Uma coisa para é descrever a vida eterna em termos do que precisa ser superado [privative], e outra é descrever em termos do que ela é realmente é [positive]. Precisamente falando, a única causa da vida eterna é a perfeita justiça de acordo com a lei: “Faze isto, e viverás”. Mas a morte de Cristo é chamada de a causa da vida eterna, porquanto ela liberta de todo mal. A libertação da condenação e a alegria celestial não são diferentes partes da vida, mas meramente diferentes relações. O sentido no qual Cristo oferece a sua carne “para a vida do mundo” (Jo 6:51) é evidente disto. Duas objeções são oferecidas: (1) Se a obediência ativa de Cristo é a causa da vida eterna, então a obediência passiva é dispensável. (2) Se Cristo obedeceu por nós, então a nossa obediência não é necessária. Mas a primeira declaração é uma conclusão que não segue da premissa: que o propósito que é comum à ambas as partes da satisfação, isto é, a nossa salvação, é uma coisa, mas o que é distinto de cada um, é completamente outra; o propósito de seu sofrimento [obediência passiva] foi livrar da punição; e o da sua justiça [obediência ativa] foi ganhar o privilégio da vida eterna. O segundo argumento contra o mérito da obediência ativa é similar ao de Socinus contra o mérito da obediência passiva. Se, ele disse, Cristo morreu em nosso lugar, então, não temos que morrer. Mas em nenhum caso há tal consequência. A morte de Cristo é de uma espécie, enquanto que a dos redimidos é de outra. A primeira é vinculada com uma maldição, e a segunda com benção. Cristo morreu como o preço pelos nossos pecados; nós morremos como uma transição desta vida para aquela que é celestial. A obediência de Cristo e a nossa possuem naturezas diferentes; a sua é perfeita justiça, que é o cumprimento no nosso lugar, como um meio de merecer a vida, enquanto a nossa é imperfeita, e um meio de apresentar a gratidão pela redenção.
IV. A justiça ativa de Cristo foi predita no Antigo Testamento pela natureza real do adorno do sumo sacerdote. Aqueles que negam o mérito da obediência ativa questionam por qual “tipo” ela foi predita. Eles querem saber se ela é parte do ofício sacerdotal, em que artigo o sumo sacerdote comporta este tipo. Mas para um propósito foi o magnífico adorno do sacerdote em que ele se apresentava diante de Deus, se ela não foi uma sombra das vestes da justiça de Cristo? Então, lemos que não somente eram as vestimentas sujas de Josué, o sacerdote, retiradas como um sinal da remoção do pecado, novas roupas lhe foram dadas e um turbante colocado nele como uma coroa (Zc 3:4-5).
(3)
Essa foi a satisfação de Cristo. A sua intercessão, no estado de humilhação, situa-se naquilo que Cristo ofereceu ao Pai, em nosso nome, orações e súplicas com lamentos e prantos. A história evangélica testemunha que Cristo dedicou-se durante noites inteiras a orar, são muitos os exemplos [de sua intercessão]. Ele foi especialmente dedicado neste ofício no tempo de sua paixão (Jo 17, Hb 5:7: “Ele, Jesus, nos dias de sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte”).
PROPOSIÇÃO
Aqueles que buscam por outros “mediadores de intercessão”, como eles os chamam, ao lado de Cristo, destroem a sua intercessão.
Os papistas distinguem entre o mediador da redenção e o mediador da intercessão. Eles atribuem o posterior ofício aos santos mortos. De fato, ao associar a intercessão de Cristo com intercessores secundários não é menos sacrilégio do que associar o seu sacrifício com sacrifícios secundários. E já que eles ensinam que os santos nos auxiliam não somente pela intercessão, mas também pelo mérito, eles arruínam a sua própria distinção; na verdade, eles dividem a glória da redenção entre Cristo e os santos, onde eles ensinam que os méritos dos santos, como uma obra adicional, purgará a impureza de nossos pecados e fazem boas o que não se fez.
(4)
Assim foi o ofício sacerdotal. [Cristo] realiza o [seu] ofício real no estado de humilhação reunindo e preservando a igreja pela [sua] palavra e Espírito, sem tornar visível nele a sua externa autoridade real
PROPOSIÇÃO
Os judeus estavam errados em buscar um reino físico e terreno do Messias. Is 42:2: “Não clamará, nem agitará, nem fará ouvir a sua voz na praça”. Is 53:2-3: “Porque foi subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso”. Zc 9:9: “Alegra-se muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, num jumentinho, cria de jumenta”.
NOTAS:
[1] Uma rejeição suficientemente clara do ensino contemporâneo do ensino de Piscator (falecido 1625) sobre a expiação por meio da obediência passiva, e uma formulação do padrão da ortodoxia reformada. Veja Francis Turrentin, Locus XIV, Questão XIII; Charles Hodge, Systematic Theology (New York, 1871), vol. 3, p. 144 e 182. Nota de John W. Beardslee III.
[2] Institutas II.xvi.8-12. Nota de John W. Beardslee III.
[3] Este é o ensino da Teoria do Exemplo do Socianismo. Nota do tradutor.
[4] Veja Earl Morse Wilbur, History of Unitarism (Cambridge, 1945), I, pp. 413-414; Laurence Grensted, Short History of the Doctrine of the Atonement (Manchester, 1920), pp. 280 ss. Ambos escritores observam que Wollebius estava advertindo que: o elemento sobrenatural (“divino”) na missão de Cristo é eliminada por Socinus, qualquer ideia de sua expiação é rejeição. Nota de John W. Beardslee III.
[5] A discussão do resgate e substituição, mesmo sendo breve, exibe a típica característica da “ortodoxia” da teologia reformada, incluindo a tendência a reduzir o conceito criminal e comercial da lei para uma fórmula simples. Veja Grensted, p. 241ss. A declaração de Francis Turrentin (Locus XIV, Questões X-XIV) traduzido para o inglês em 1817, e reimpresso novamente (James R. Wilson, Turrentin on the Atonement, New York, 1859). Nota de John W. Beardslee III.
[6] Omite as citações. Nota de John W. Beardslee III.
[7] É a figura de linguagem que possibilita a troca de um termo por outro da mesma similaridade, em que há proximidade de significado entre elas. Nota do tradutor.
[8] Veja Turretin, Locus IV, Questão XVII. Nota de John W. Beardslee III.
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