Você está equivocado no modo como expõe a impressão de que [Felipe] Melanchton[1] não concorda conosco a respeito da doutrina da predestinação.[2] Eu somente disse de forma breve que tinha uma carta escrita por sua própria mão, na qual ele confessou que sua opinião concordava com a minha. Contudo, posso crer que de tudo o que você disse, e que não é novidade sua equivocar-se neste assunto, o melhor é desfazer-se das enfadonhas dúvidas. Certamente não existe ninguém que tenha mais aversão ao paradoxo do que eu, e em sutilezas não encontro nenhum prazer. Contudo, nada poderia impedir-me de admitir abertamente o que tenho aprendido da Palavra de Deus; pois, nada além do que é proveitoso é ensinado na escola deste mestre. Ela é o meu único guia, e concordar com as suas evidentes doutrinas seria minha constante regra de sabedoria.[3]
O que você também, meu querido Lélio,[4] poderia aprender regular a sua capacidade com a mesma moderação! Você não tem motivos para esperar de mim uma réplica do mesmo modo como você levou adiante aquelas monstruosas questões. Se você está satisfeito pela incerteza entre aquelas tênues especulações, permita-me, eu lhe suplico, um humilde servo de Cristo, para que medite sobre aqueles assuntos que tendem para a edificação da minha fé. E, de fato, eu daqui em diante seguirei minha sabedoria em silêncio, que você possa não ser aborrecido por mim. E, na verdade, estou muito preocupado com os finos talentos com os quais Deus tem concedido a você, que poderiam ser ocupados não somente com coisas que são vãs e infrutíferas, mas que correm o risco de também ser prejudicados por imaginações perniciosas. Advirto você de continuar, e seriamente preciso repetir, que a menos que você corrija a tempo esta sarna após uma investigação, ela deverá ser temida, pois você trará sobre si mais severo sofrimento.
Eu seria cruel com você se tratasse do assunto com uma aparência de indulgência, o que creio ser um verdadeiro erro.[5] Preferiria, adequadamente, ofender-lhe um pouco no presente pela minha severidade, do que permiti-lo entregar-se incontrolado na cativante fascinação da curiosidade. O tempo virá, eu espero, quando você regozijará em ter sido tão violentamente admoestado. Adeus, irmão tão altamente estimado por mim; e se esta repreensão for demais áspera do que ela tem que ser, atribua-a ao meu amor por você.[6]
NOTAS:
[1] Nota do tradutor: numa carta anterior Socino acusou Felipe Melanchton de discordar de Calvino quanto à doutrina da predestinação. Inicialmente Melanchton defendia como Calvino a doutrina da predestinação, todavia, posteriormente a morte de Martinho Lutero ele modificou em muito a sua posição, tornando-a mais sinergista. Talvez, nesta época Socino já havia identificado esta mudança em Melanchton e usou a sua opinião para confrontar Calvino. Vide, Bengt Hägglund explica que “Melanchton passou a rejeitar a própria ideia da predestinação na forma em que a apresentara anteriormente” in: História da Teologia (São Leopoldo, Concórdia Editora, 1999), p. 214.
[2] Nota do tradutor: por causa do seu estreito relacionamento com Melanchton, Calvino prefaciou a primeira edição francesa de Loci Communes. Posteriormente, Calvino ao perceber a mudança sinergista que ocorreu com o colega luterano, lamentou este fato. Vide, Paul K. Jewett, Elección y Predestinación (Jenison, TELL, 1992), p. 28
[3] Nota do tradutor: Esta interação epistolar com Socino fez com que Calvino, quanto a doutrina do mérito de Cristo e da certeza da fé, incorporasse “estas respostas na edição de 1559 das Institutas, sem qualquer modificação significativa.” Alister McGrath, A vida de João Calvino (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2004), p. 63.
[4] Nota do tradutor: Lélio Socino [Laelius Socinus] - (1525-1562) precursor da seita herética unitarista conhecida por Socianismo que surgiu na segunda metade do século XVI e início do XVII. O historiador I. Breward nota que a “sua obra Confissão de Fé (1555), que usava termo ortodoxos, mas de maneira ilimitada e inquiridora, fez que alguns protestantes se sentissem desconfortáveis.” I. Breward, “Socino e Socinianismo” in: Sinclair Ferguson, ed., Novo Dicionário de Teologia (São Paulo, Editora Hagnos, 2009), p. 932. Lélio Socino esteve em Genebra em dois momentos diferentes, primeiro entre 1548, ou 1549, e noutro momento, em 1554. Philip Schaff, History of the Christian Church (Peabody, Hendrickson Publishers, 2011), vol. 8, pp. 634-635.
[5] Nota do tradutor: Servetus foi executado em 1553. Se Socino explicitasse as suas ideias, certamente teria um fim semelhante ao do unitarista espanhol. Mas Socino pela sua forma polidamente educada, levantando mais questões e dúvidas, do que fazendo asseverações confrontadoras, consegue esconder a sua verdadeira opinião sobre a doutrina da Trindade. A sua dissimulação teológica conseguiu que desfrutasse de uma amizade com Henrich Bullinger.
[6] Nota do tradutor: esta carta escrita por Calvino pertence aos últimos meses do ano de 1551. Lélio Socino estava residindo em Wittenberg, Alemanha. Calvino evidencia certa intolerância as insistentes dúvidas e cepticismo de Socino quanto às doutrinas da expiação vicária, dos sacramentos e Trindade.
Extraído de Letters of John Calvin: Select from the Bonnet Edition with an introductory biographical sketch (Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1980), pp. 128-129. Este livro foi publicado em português sob o título de Cartas de João Calvino (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2009).
Tradução e notas revisadas em 27 de Fevereiro de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática no SPBC-RO
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