A Staupitz. 20 de Fevereiro de 1519[1]
Ao reverendo e excelentíssimo padre Johan Staupitz, vigário dos Ermitões de Santo Agostinho, e no culto de Cristo, o seu patrono e superior.
Jesus. Saudações. Reverendo padre: Ainda que esteja tão longe de mim e tão calado que não me escreva as esperadíssimas cartas, me atreverei a quebrar o silêncio.[2] Desejo – bem como desejam todos – que te deixes ver alguma vez nesta situação afligida pelas pragas do céu. Espero haver chegado até você as minhas Atas[3], ou seja, a cólera e a indignação de Roma. Deus não somente me conduz, me arrebata, como também me empurra; não estou em minha sensatez: quero estar tranquilo e todavia, me vejo pressionado no fragor dos tumultos.
Carlos Miltitz entrevistou-me em Altenburg[4]. Estava queixoso de que eu tinha ganho a todos para a minha causa e os afastado do papa. Da exploração que fiz em todas as hospedagens deduzi que apenas dois a cada cinco estavam a favor de Roma. Depois, na corte do príncipe, informei-me que vinha armado com setenta breves apostólicos a fim de conduzir-me preso para a Jerusalém homicida, a essa Babilônica de púrpura.[5] Quando desesperou-se neste projeto começou a tratar de que eu restituísse à igreja romana o que lhe havia roubado, e se empenhou em convencer-me que eu me retratasse. Ao rogar-lhe que me indicasse no que tinha que retratar-me, por fim, nos convencemos em remeter a causa a alguns bispos. Propus-lhe o arcebispo de Salzburg, bem como ao de Tréveres e ao de Freising. Pela tarde fui convidado, estivemos alegres na comida e nos separamos depois de haver me dado um ósculo. Comportei-me como se não estivesse consciente dessas italianidades e simulações. Também convocou a Tetzel e lhe repreendeu. Em Leipzig, por fim, o convenceu de que gozasse de uma estupenda mensalidade de noventa florins e mais três empregados e uma carruagem livre de todo custo. Então, Tetzel desapareceu; ninguém – talvez, a exceção de seus progenitores – sabe para onde ele se foi.[6]
Eck, meu homem astuto, quer arrastar-me para novas disputas, como pode ver no que te adjunto. Desta maneira, Deus cuida em manter-me andando ocupado. Mas, se é a vontade de Cristo, desta disputa nada de bom poderá saldar para os direitos e usos de Roma, que são o cetro em que Eck se apoia.[7]
Eu gostaria que visse os meus livretos impressos em Basiléia[8] e que confrontasse o que os eruditos opinam sobre mim, sobre Eck, sobre Silvestre e sobre os teólogos escolásticos. Equivocando-se deliberadamente, com muitíssimo gracejo, chamam Silvestre (além de outras coisas cheias de humor) de magiro de palácio, em lugar de mestre de palácio (magiro em grego significa cozinheiro)[9]. Isto cairá mal aos heróis romanos. Rogo a ti: reze por mim. Confio com firmeza que o Senhor forçará ao teu coração para cuidar de mim. Sou um homem que está em perigo e empurrado à sociedade, ao deboche, ao desprezo, a negligência e outras moléstias, além das que me oprimem por ofício.
Por fim, se aproximam os de Leipzig para a disputa com Eck. Acusam-me de ser imprudente por escrever que rejeitava e reclamam que cante a palinódia num escrito pessoal. Mas fui assegurado pelo duque George[10] de que eles haviam recusado antecipadamente e eu disse a eles em duas ocasiões que o seu decano havia recusado anteriormente a minha petição, como na realidade o fez. Desta maneira tão baixa quer esta gente impedir tal disputa; mas, o duque George continua urgindo-a.
Adeus, boníssimo padre. 20 de Fevereiro de 1519. Fr. Martinus Lutherus, agostiniano.
NOTAS:
[1] WA 1, pp. 344-345. Nota de Teófanes Egido.
[2] Johannes Staupitz para não se comprometer, associando-se de algum modo, com Lutero, evita inclusive responder as várias cartas enviadas por Lutero, em que o reformador alemão solicita conselhos, posicionamento e coerência com o evangelho que primeiramente ele viu em seu tutor. Veja nas outras cartas traduzidas os insistentes pedidos de resposta de Lutero. Nota do tradutor.
[3] Lutero se refere às Atas Augustana (WA 2, 1ss), onde narra a célebre entrevista com Cajetano (cf. Conversas à Mesa, n. 9-10 desta edição). Nota de Teófanes Egido.
[4] Sobre os contatos do legado de Miltitz e Lutero neste tempo e a desafortunada intervenção do primeiro, cf. a nossa introdução ao Tratado sobre a liberdade cristã, escrito 5 desta edição. Sobre a entrevista aludida por Lutero, cf. H. Boehmer, Der junge Luther, ed. de H. BornKamm, Leipzig 1952, pp. 207ss. Nota de Teófanes Egido.
[5] É interessante notar que Lutero usa uma linguagem apocalíptica condenatória contra a Igreja Romana, bem como contra ao papa. Nota do tradutor.
[6] Johannes Tetzel (1465-1519) pregador da indulgência que desencadeou o primeiro protesto público de Lutero em 1517 (veja as 95 Teses). Sobre a alusão da carta e o histórico do dominicano, cf. N. Paulus, Johann Tetzel der Ablassprâdiger, Mainz 1899, pp. 71ss. Nota de Teófanes Egido.
[7] Refere às teses impressas por Eck (WA 2, p. 154) com vistas à disputa que em Leipzig lhe enfretaria com Karlstadt e Lutero. Eck foi sem dúvidas o mais formidável e um dos melhores e mais preparados debatedores contra Lutero. Nota de Teófanes Egido.
[8] Os seus primeiros escritos latinos surgem editados em Outubro de 1518, na impressa de Froben (Basiléia), numa edição feita sema autorização de Lutero. Nota de Teófanes Egido.
[9] Silvestre Prierias (1456-1523), um dos primeiros rivais de Lutero, sem a grandeza de Eck. O livro Diálogo equivocadamente da capa do livro, cf. WA 1, p. 645. Nota de Teófanes Egido.
[10] O duque George Spalatino da Saxônia. Nota do tradutor.
Extraído de Teófanes Egido, org., Lutero – Obras (Salamanca, Ediciones Síguime, 4ª ed., 2006), p. 377-378.
Tradução em 8 de Abril de 2014.
Rev. Ewerton B. Tokashiki
Pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Porto Velho
Professor de Teologia Sistemática do SPBC-RO.
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