[1 de agosto de 1521][1]
Dia do apóstolo são Pedro, 1521.[2]
Mesmo porque, Paulo afirma com toda
liberdade que foram os demônios quem vedaram o matrimônio aos sacerdotes.[3] Assim,
como a voz de Paulo é a voz de Deus, não há dúvida de que há que confiarmos
nela, de forma que ainda que houvessem pactuado esta proibição diabólica desde
o princípio, agora, quando são conscientes de a quem prometeram, há que romper
confiadamente o pacto.
Esta proibição do diabo expressada
claramente na Escritura Sagrada obriga-me e força a aprovar o realizado pelo
bispo cameracense. Deus não engana, nem mente ao dizer que esta é uma proibição
do diabo. Portanto, não pode ser estável o pacto firmado, já que se fez na
força de um erro ímpio contra Deus e, além disso, depois de havê-lo reprovado e
condenado. Disse expressamente serem espíritos do erro os autores dessa
proibição.
Por que, então, há de temer a
aceitação desta sentença divina, ainda que se oponham todas as portas do
inferno? Não se pode comparar isto com o juramento que os filhos de Israel
fizeram aos gibeonitas, porque tinham o preceito de oferecer a paz e de admiti-la
se lhes era oferecida. Por isso, os admitiram na qualidade de prosélitos
aderidos a seu rito. Tudo se fez em Gibeão, pois nada houve nele que se fizesse
contra Deus, nem por sugestão dos espíritos do erro, e ainda que a princípio
murmurassem, depois achegaram-se a ele.[4]
Além do mais, acrescenta que o
celibato é uma instituição meramente humana; o homem que o instituiu pede
rescindi-lo e, portanto, pode executá-lo qualquer um cristão. Fixa-te que o
digo, inclusive supondo que não tenha se estabelecido por demônios, senão por
um bom homem.
Ao não contar com esta sentença divina
que se refere aos monges, não é seguro afirmar o mesmo deles. Pessoalmente não
me atreveria fazê-lo e, por isso, tão pouco aconselharia aos demais que o
fizessem. Desejo fosse possível fazê-lo para que de agora adiante ninguém se
fizesse monge, ou para que saíssem os que o são, e se encontram na idade da
luxúria. Há que evitar os escândalos, ainda que fossem lícitos, nas coisas em
que a Escritura não nos manifesta com clareza.
Quanto ao que o exímio Karlstadt cita
de são Paulo que “há que evitar as jovens viúvas e escolher as sexagenárias,”[5]
desejo que fosse convincente! Porque podem facilmente arguir que o apóstolo o
estabelece para as futuras, e que das anteriores disse estar condenadas por
haver falhado com o primeiro compromisso. Essa autoridade evitada não pode
constituir um fiel apoio para a consciência, que é o que andamos buscando. E, o
que é senão a razão a que inclui que “melhor é casar-se do que viver abrasado”
para evitar a fornicação? Então, o matrimônio com o pecado quebra o pacto.
Somente buscamos a Escritura e o testemunho da vontade divina. Quem sabe se ao
se abrasar hoje, não se abrasaria também amanhã?
Nem eu me atreveria conceder aos
sacerdotes o matrimônio somente por esse abrasamento, se são Paulo não disse
que tal proibição do matrimônio é errônea, diabólica, hipócrita e condenada por
Deus.[6] Ou
seja, que ainda que independente do ardor, têm que abandonar o celibato somente
pelo temor de Deus. Mas sobre este problema seria útil discutir com maior
compromisso. Seria muito satisfatório que pudesse ajudar os frades e as
freiras, mas eu sinto muito por estes pobres moços e moças, atormentados pelas
poluições e coceiras.
Quanto à comunhão, sob as duas
espécies, não argumentarei por meio de exemplos, senão com base na Palavra de
Cristo. Não há argumento que convença de que peca, ou deixe de fazê-lo quem
receba somente uma espécie; o que há que ter em conta é que Cristo não exige
nenhuma das duas, como não exige necessariamente o batismo quando um tirano, ou
o mundo fazem impossível recorrer à água. Também a violência das perseguições
separa o marido da esposa que Deus proibiu que se separassem, sem que um ou o
outro consentisse na separação. Da mesma maneira, tão pouco, quem os corações
piedosos veem-se privados da segunda espécie, e quem o consente ou aprova,
ninguém poderá negar que são papistas, e não cristãos, nem negar que cometem
pecado.
Se não existe esta exigência da
necessidade, e sendo que há um tirano que urge, não vejo como possa pecar quem
recebe apenas uma espécie. Quem poderá eliminar pela força ao tirano que se
opõe? Portanto, o único que vale é a razão que dita que não se observa o que
foi estabelecido por Cristo, mas nada define a Escritura, sem a qual não
podemos afirmar que constitua pecado. É algo formado por Cristo, mas livremente
permitido e não pode ser cativado nem no todo, nem na parte. O que fazer se,
como no caso do mártir Donato, que se rompeu e derramou o cálice e alguns não
puderam comungar esta espécie, porque não se tem disponível mais vinho, ou se
ocorressem em outras circunstâncias? Em resumo, sendo que a Escritura não se
pronuncia, nem eu me atrevo dizer de minha parte que isto seja pecado. É muito
conveniente, todavia, que restaurem ao seu prístino estado este ensino de
Cristo, e precisamente este era o primeiro que havia pensado solicitar quando
regressar aí. Conhecemos há muito este tirano, e podemos resisti-lo para não
nos vermos obrigados a comungar somente sob uma espécie.
O que nunca voltarei a fazer é
celebrar a missa privada. Rogo fervorosamente a Deus que se apresse em
conceder-nos o seu Espírito em abundância. Suspeito que não tardará que Deus
visite a Alemanha pelo merecido que tem a sua incredulidade, sua impiedade e
seu ódio pelo evangelho. Quando isto acontecer eles lançarão sobre nós a culpa
deste açoite, por provocarmos a Deus com nossa heresia e nos “convertemos na
vergonha dos homens e no desejo do povo;”[7]
mas, eles acharão desculpas para os seus pecados, se justificarão comprovando
que os réprobos não se converterão, nem pela bondade, nem pela ira e muitos se
escandalizarão. Que se faça, sim, que se cumpra a vontade do Senhor. Amém!
Se você é pregador da graça, prega a
graça verdadeira, não a graça fingida; se a graça é verdadeira, tenha a certeza
de que se trata do pecado verdadeiro, não do fingido, porque, Deus não salva os
pecadores fingidos. Seja pecador e peque fortemente, mas confia e se alegre
mais fortemente ainda em Cristo, vencedor do pecado, da morte e do mundo. Há de
pecar enquanto vivamos aqui. Esta vida não é a morada da justiça, senão que,
como disse Pedro, estamos à espera de novos céus e de nova terra em que habite
a justiça.[8]
Basta que pela riqueza da glória tenhamos conhecido o Cordeiro de Deus que tira
o pecado do mundo;[9]
deste não nos separará o pecado, inclusive ainda que forniquemos e matemos
milhares e milhares de vezes ao dia. Por que é que crê ser tão mingado o preço
da redenção de nossos pecados, pago por tão grande e bom cordeiro?
Ore forte ainda que seja um pecador
fortíssimo.
[1] WA Br 2,
370-372. Como se pode observar a carta somente foi conservada
fragmentariamente. Felipe Melanchthon (1497-1560), indubitavelmente o
personagem mais próximo de Lutero, apesar de seu distanciamento teológico
progressivo e as suas diferenças de caráter, foi na realidade o primeiro
sistematizador da teologia de Lutero (em suas Loci Communes, 1521).
Lutero sempre o venerou, se preocupou com a sua saúde, o animou e lhe exasperou
em muitas ocasiões. Está presente em quase todas as tentativas de aproximação
entre Roma e a Reforma. Graças a ele pode-se preservar, ao menos num setor do
luteranismo, um humanismo do qual o reformador e Amsdorf careciam. Cf. H. Bornkamm, Philipp Melanchthon, Göttingen
1950; P. Meinhold, Philipp Melanchthon, der Lehrer der Kirche, Berlin
1960; L. Stern, Martin Luther und Philipp Melanchthon. Ihre ideologische
Herkunft und geschichtliche Leistung, 1953; W.H. Heuser, Luther und
Melanchthon, Einheit in Gegensatz, München 1960; V. Vajta, Luther und
Melanchthon, Göttingen 1961; M. Greschat, Melanchthon neben Luther,
Witten 1965. Teófanes Egido, org., Lutero – Obras, pp. 385-387.
[2] Refere-se
à festividade de são Pedro “ad vincula.”
[3] Bartolomé
Bernhard de Feldkirch prefeito de Kemberg (daí a denominação de “cameracense”
aludindo ao famoso Pierre d’Ally bispo de Cambrai) que se casou com farto
consentimento de Lutero (Lutero e Melanchthon, 26 de maio de 1521: WA Br 2, p.
347).
[4] Em 1Tm
5.12. Esta primeira parte da carta, ponto de partida das variações posteriores
do pensamento de Lutero sobre o celibato, esteve determinada pelas teses
sustentadas por Karlstadt em junho deste ano em Wittenberg.
[5] Em 1Co
7.2 e 9.
[6] Em Sl
22.7.
[7] Esta
expressão foi uma das mais atacadas pela apologética antiluterana. Pelo
contexto o leitor verá o forte conteúdo teológico e cristológico, veementemente
(era o seu humor) expresso por Lutero. Uma exegese aceitável deste lugar, cf.
J. Lortz, o.c. I, 317 ss.
[8] Em 2Pe
3.13.
[9] Em 1Jo
1.29.