quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Algumas críticas à Loci Communi: A carta de Martinho Lutero para Felipe Melanchthon


 [1 de agosto de 1521][1]

Dia do apóstolo são Pedro, 1521.[2]

 Você não terminou de dar razões suficientes para medir com a mesma norma o voto dos sacerdotes e dos freis. A mim, o que mais me convence é que a ordem sacerdotal foi estabelecida como livre por Deus; mas, não foi assim com os monges que espontaneamente escolheram e ofereceram a sua origem a Deus. Quase me atreveria a decidir que quem ingressou nestes compromissos antes de sua puberdade que podem sair dela sem escrúpulo, se não fosse porque ainda não me atrevo a sentenciar nada acerca dos que são velhos e viveram durante longo tempo neste estado.

Mesmo porque, Paulo afirma com toda liberdade que foram os demônios quem vedaram o matrimônio aos sacerdotes.[3] Assim, como a voz de Paulo é a voz de Deus, não há dúvida de que há que confiarmos nela, de forma que ainda que houvessem pactuado esta proibição diabólica desde o princípio, agora, quando são conscientes de a quem prometeram, há que romper confiadamente o pacto.

Esta proibição do diabo expressada claramente na Escritura Sagrada obriga-me e força a aprovar o realizado pelo bispo cameracense. Deus não engana, nem mente ao dizer que esta é uma proibição do diabo. Portanto, não pode ser estável o pacto firmado, já que se fez na força de um erro ímpio contra Deus e, além disso, depois de havê-lo reprovado e condenado. Disse expressamente serem espíritos do erro os autores dessa proibição.

Por que, então, há de temer a aceitação desta sentença divina, ainda que se oponham todas as portas do inferno? Não se pode comparar isto com o juramento que os filhos de Israel fizeram aos gibeonitas, porque tinham o preceito de oferecer a paz e de admiti-la se lhes era oferecida. Por isso, os admitiram na qualidade de prosélitos aderidos a seu rito. Tudo se fez em Gibeão, pois nada houve nele que se fizesse contra Deus, nem por sugestão dos espíritos do erro, e ainda que a princípio murmurassem, depois achegaram-se a ele.[4]

Além do mais, acrescenta que o celibato é uma instituição meramente humana; o homem que o instituiu pede rescindi-lo e, portanto, pode executá-lo qualquer um cristão. Fixa-te que o digo, inclusive supondo que não tenha se estabelecido por demônios, senão por um bom homem.

Ao não contar com esta sentença divina que se refere aos monges, não é seguro afirmar o mesmo deles. Pessoalmente não me atreveria fazê-lo e, por isso, tão pouco aconselharia aos demais que o fizessem. Desejo fosse possível fazê-lo para que de agora adiante ninguém se fizesse monge, ou para que saíssem os que o são, e se encontram na idade da luxúria. Há que evitar os escândalos, ainda que fossem lícitos, nas coisas em que a Escritura não nos manifesta com clareza.

Quanto ao que o exímio Karlstadt cita de são Paulo que “há que evitar as jovens viúvas e escolher as sexagenárias,”[5] desejo que fosse convincente! Porque podem facilmente arguir que o apóstolo o estabelece para as futuras, e que das anteriores disse estar condenadas por haver falhado com o primeiro compromisso. Essa autoridade evitada não pode constituir um fiel apoio para a consciência, que é o que andamos buscando. E, o que é senão a razão a que inclui que “melhor é casar-se do que viver abrasado” para evitar a fornicação? Então, o matrimônio com o pecado quebra o pacto. Somente buscamos a Escritura e o testemunho da vontade divina. Quem sabe se ao se abrasar hoje, não se abrasaria também amanhã?

Nem eu me atreveria conceder aos sacerdotes o matrimônio somente por esse abrasamento, se são Paulo não disse que tal proibição do matrimônio é errônea, diabólica, hipócrita e condenada por Deus.[6] Ou seja, que ainda que independente do ardor, têm que abandonar o celibato somente pelo temor de Deus. Mas sobre este problema seria útil discutir com maior compromisso. Seria muito satisfatório que pudesse ajudar os frades e as freiras, mas eu sinto muito por estes pobres moços e moças, atormentados pelas poluições e coceiras.

Quanto à comunhão, sob as duas espécies, não argumentarei por meio de exemplos, senão com base na Palavra de Cristo. Não há argumento que convença de que peca, ou deixe de fazê-lo quem receba somente uma espécie; o que há que ter em conta é que Cristo não exige nenhuma das duas, como não exige necessariamente o batismo quando um tirano, ou o mundo fazem impossível recorrer à água. Também a violência das perseguições separa o marido da esposa que Deus proibiu que se separassem, sem que um ou o outro consentisse na separação. Da mesma maneira, tão pouco, quem os corações piedosos veem-se privados da segunda espécie, e quem o consente ou aprova, ninguém poderá negar que são papistas, e não cristãos, nem negar que cometem pecado.

Se não existe esta exigência da necessidade, e sendo que há um tirano que urge, não vejo como possa pecar quem recebe apenas uma espécie. Quem poderá eliminar pela força ao tirano que se opõe? Portanto, o único que vale é a razão que dita que não se observa o que foi estabelecido por Cristo, mas nada define a Escritura, sem a qual não podemos afirmar que constitua pecado. É algo formado por Cristo, mas livremente permitido e não pode ser cativado nem no todo, nem na parte. O que fazer se, como no caso do mártir Donato, que se rompeu e derramou o cálice e alguns não puderam comungar esta espécie, porque não se tem disponível mais vinho, ou se ocorressem em outras circunstâncias? Em resumo, sendo que a Escritura não se pronuncia, nem eu me atrevo dizer de minha parte que isto seja pecado. É muito conveniente, todavia, que restaurem ao seu prístino estado este ensino de Cristo, e precisamente este era o primeiro que havia pensado solicitar quando regressar aí. Conhecemos há muito este tirano, e podemos resisti-lo para não nos vermos obrigados a comungar somente sob uma espécie.

O que nunca voltarei a fazer é celebrar a missa privada. Rogo fervorosamente a Deus que se apresse em conceder-nos o seu Espírito em abundância. Suspeito que não tardará que Deus visite a Alemanha pelo merecido que tem a sua incredulidade, sua impiedade e seu ódio pelo evangelho. Quando isto acontecer eles lançarão sobre nós a culpa deste açoite, por provocarmos a Deus com nossa heresia e nos “convertemos na vergonha dos homens e no desejo do povo;”[7] mas, eles acharão desculpas para os seus pecados, se justificarão comprovando que os réprobos não se converterão, nem pela bondade, nem pela ira e muitos se escandalizarão. Que se faça, sim, que se cumpra a vontade do Senhor. Amém!

Se você é pregador da graça, prega a graça verdadeira, não a graça fingida; se a graça é verdadeira, tenha a certeza de que se trata do pecado verdadeiro, não do fingido, porque, Deus não salva os pecadores fingidos. Seja pecador e peque fortemente, mas confia e se alegre mais fortemente ainda em Cristo, vencedor do pecado, da morte e do mundo. Há de pecar enquanto vivamos aqui. Esta vida não é a morada da justiça, senão que, como disse Pedro, estamos à espera de novos céus e de nova terra em que habite a justiça.[8] Basta que pela riqueza da glória tenhamos conhecido o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo;[9] deste não nos separará o pecado, inclusive ainda que forniquemos e matemos milhares e milhares de vezes ao dia. Por que é que crê ser tão mingado o preço da redenção de nossos pecados, pago por tão grande e bom cordeiro?

Ore forte ainda que seja um pecador fortíssimo.


NOTAS:

[1] WA Br 2, 370-372. Como se pode observar a carta somente foi conservada fragmentariamente. Felipe Melanchthon (1497-1560), indubitavelmente o personagem mais próximo de Lutero, apesar de seu distanciamento teológico progressivo e as suas diferenças de caráter, foi na realidade o primeiro sistematizador da teologia de Lutero (em suas Loci Communes, 1521). Lutero sempre o venerou, se preocupou com a sua saúde, o animou e lhe exasperou em muitas ocasiões. Está presente em quase todas as tentativas de aproximação entre Roma e a Reforma. Graças a ele pode-se preservar, ao menos num setor do luteranismo, um humanismo do qual o reformador e Amsdorf careciam. Cf. H. Bornkamm, Philipp Melanchthon, Göttingen 1950; P. Meinhold, Philipp Melanchthon, der Lehrer der Kirche, Berlin 1960; L. Stern, Martin Luther und Philipp Melanchthon. Ihre ideologische Herkunft und geschichtliche Leistung, 1953; W.H. Heuser, Luther und Melanchthon, Einheit in Gegensatz, München 1960; V. Vajta, Luther und Melanchthon, Göttingen 1961; M. Greschat, Melanchthon neben Luther, Witten 1965. Teófanes Egido, org., Lutero – Obras, pp. 385-387.

[2] Refere-se à festividade de são Pedro “ad vincula.”

[3] Bartolomé Bernhard de Feldkirch prefeito de Kemberg (daí a denominação de “cameracense” aludindo ao famoso Pierre d’Ally bispo de Cambrai) que se casou com farto consentimento de Lutero (Lutero e Melanchthon, 26 de maio de 1521: WA Br 2, p. 347).

[4] Em 1Tm 5.12. Esta primeira parte da carta, ponto de partida das variações posteriores do pensamento de Lutero sobre o celibato, esteve determinada pelas teses sustentadas por Karlstadt em junho deste ano em Wittenberg.

[5] Em 1Co 7.2 e 9.

[6] Em Sl 22.7.

[7] Esta expressão foi uma das mais atacadas pela apologética antiluterana. Pelo contexto o leitor verá o forte conteúdo teológico e cristológico, veementemente (era o seu humor) expresso por Lutero. Uma exegese aceitável deste lugar, cf. J. Lortz, o.c. I, 317 ss.

[8] Em 2Pe 3.13.

[9] Em 1Jo 1.29.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Carta de Johannes Aecolampadius para Hulrich Zwingli

20 de agosto de 1531.[1] 

 Saudações. Eu li, mui querido irmão, a opinião que você expressou a respeito do caso do rei da Inglaterra, e eu prontamente concordo com ela, percebendo claramente com que julgamento imparcial você pesou todas as circunstâncias do caso; e, não tenho dúvidas de que o resultado deste esforço não será motivo de arrependimento. Agradeço, portanto, por isso. Ficarei com a cópia que você redigiu, a qual, entretanto, lhe será devolvida, se assim o desejar. Minha opinião em nada difere da sua, exceto na maneira de expressá-la: você deve ler por si mesmo, já que não é muito extensa, mas ela é quase como uma carta. Bucer e Capito, até agora, sustentaram pontos de vista diferentes dos nossos; mas espero que, ao lerem a sua opinião, não mais discordem de nós, embora estejam muito preconceituosos em favor de suas próprias opiniões, especialmente de uma delas, circunstância que ocasiona não pequenos inconvenientes para uma igreja tão diferente. Eles permitiriam que o rei tivesse duas esposas: mas, esteja longe de nós seguirmos a Maomé neste aspecto, em vez de Cristo. 

 Então, com respeito à reconciliação com os cinco cantões, gostaria de estar enganado; mas, embora algumas pessoas esperem isso, não tenho a menor esperança que ocorra, a menos que uma das partes se humilhe ou seja humilhada. Eu tinha escrito anteontem (e pretendia entregar esta carta ao seu mensageiro, mas não o encontrei) por desejo urgente de quem enviou a resposta do Conselho ao seu povo. Envio a carta, embora agora seja fora de época e supérflua; mas desejo que você seja informado da ansiedade de seu amigo, mesmo que seja inútil. Adeus, com sua esposa e irmãos.[2] 

Aecolampadius. 


 NOTAS: 
 [1] Rev. Hastings Robinson,Original Letters Relative to the English Reformation (Cambridge, The Cambridge University Press, 1847), pp. 551-552. 
 [2] Esta é a última carta de Aecolampadius para Zwingli, visto que o reformador suíço alemão falece em 10 de outubro de 1531. Nota do tradutor.

domingo, 29 de março de 2020

Fragmento do rascunho da Ordenança Eclesiástica sobre a “Propriedade do Matrimônio” por João Calvino

Além disso, caso contrário, não poderíamos levá-los a um acordo, ordenamos e pedimos antecipadamente e antes de tudo que façam um inventário de suas mercadorias e dos seus negócios, dívidas, títulos e tudo mais que depende disso, dos seus móveis, utensílios, bens comuns e bens adquiridos. Deixe que eles resolvam e fechem suas contas e, assim, providenciem entre eles que haja uma resolução definitiva, que ponham fim a todas as brigas anteriores e que, a partir de agora, cada um possa saber o que é seu para que não haja reclamação. E desejamos que isso seja feito o mais rápido possível, o mais tardar dentro de um ano, sem procedimentos formais, mas pacificamente e com boa vontade. Se uma das partes não quiser consentir, ou seja, fazer esse inventário e liquidar suas contas sem um processo ou ir a um tribunal, a outra parte terá a opção e a liberdade de renunciar ao presente contrato e retornando ao seu primeiro curso [de ação legal?].

Sendo assim, será nosso desejo que as duas partes vivam juntas, mantendo uma família comum como fizeram até agora, tanto para seu próprio contentamento e repouso, como para evitar as conversas fúteis do mundo e o escândalo que possa resultar de sua separação. No entanto, como não podemos fazê-los concordar com isso,[1] ordenamos que a separação seja realizada quando as contas forem concluídas, ou seja, dentro de um ano. Para que eles se separem e cada um se retire pacificamente,[2] sob pena de retornar à sua condição anterior, ou seja, cada um deles deve, respectivamente, continuar com os direitos e ações que tomou como se este presente acordo nunca fosse feito. No entanto, se acontecer posteriormente que, para a facilidade e conveniência das duas partes ou de uma delas, lhes pareça apropriado organizar e realizar uma separação, nós os deixamos livres para fazê-lo.[3]


NOTAS:
[1] Calvino primeiro escreveu: “No entanto, se isso não puder ser feito de outra maneira e ambas as partes preferirem viver separadamente, ou um dos dois desejar isso, solicitamos ... ”.
[2] O texto original: “eles são mutuamente obrigados a se separar, cada um a pedido do outro ... ”.
[3] O texto está em CO 10/1:143–44 sem data citado pelo livro de Philip L. Reynolds and John Witte, Jr., orgs., To Have and to Hold - Marrying and Its Documentation in Western Christendom, 400–1600 (Cambridge, Cambridge University Press, 2007), p. 478.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Conselhos de João Calvino sobre empréstimo, usura e Igreja e Estado.

Eu seria mais diligente em responder, querido irmão, se não fosse impedido pela dificuldade que parece estar relacionada à pergunta que fez em sua carta. Você pergunta se é permitido aos ministros cobrar e obter lucro com o dinheiro deles. Se eu disser “não” categoricamente, minha resposta poderá ser julgada mais severa do que a correta e, possivelmente, será distorcida. Portanto, não me atreveria a afirmar que não é permitido. Sei como é provável que isso acarrete falsas acusações e escândalos, mais intrigante, e como a maioria das pessoas estendem os limites dos bens que podem adquirir, mesmo sob condições de restrição, prefiro parar de me comprometer do que dar uma resposta completa, e oferecer a minha opinião de que este assunto fosse liberado de restrições de uma vez por todas.

Seria sensato, é claro, abster-se de transações desse tipo e da ganância por lucros. Jeremias tem o propósito de testemunhar sobre si mesmo: “Nunca lhes emprestei com usura, nem eles me emprestaram a mim com usura; todavia, cada um deles me amaldiçoa” [Jr 15.10]. Quando um ministro da Palavra pode impedir-se de obter lucros desse tipo, ele está tomando a decisão certa para si. Não obstante, é mais tolerável que receba esse lucro do que entre nos negócios ou empreenda alguma atividade que o afaste dos deveres de seu ofício e, portanto, não vejo que isso mereça condenação como algo geral. Eu gostaria de ver a restrição usada. Obviamente, ele não deve estipular uma taxa de retorno definitiva ou que uma quantia específica de dinheiro lhe seja paga. Ele pode, no entanto, investir seu dinheiro com um homem honesto, cuja boa fé e honestidade ele confia. Que se contente com um retorno justo e honesto de seu dinheiro, de acordo com o modo das bênçãos de Deus sobre ele como usuário de riqueza.

Sobre a questão de prestar juramento no consistório, você deve agir com prudência para combater as desvantagens e murmúrios dos iníquos. Será melhor, portanto, se aqueles que são chamados prestarem juramento quando for necessário e permanecerem como se estivessem no tribunal de Deus, uma vez que o próprio Deus está presidindo uma assembleia. Evite cuidadosamente qualquer tipo de ação que tenha aparência de uma justificativa, ou mesmo algo parecido.

Por fim, não vejo dificuldade em admitir no consistório àqueles que são responsáveis pela jurisdição civil normal, desde que não estejam presentes devido ao prestígio e respeito à sua jurisdição. Uma distinção deve sempre ser observada entre essas duas áreas claramente distintas de responsabilidade: a civil e a eclesiástica. Além disso, não há razão para excluí-los de nossas investigações e decisões sobre assuntos espirituais. Em resumo, quando homens adequados forem escolhidos para esse cargo, cuidem para que não combinem o poder da espada com algo que, por sua própria natureza, deva permanecer distinto desse poder.

Achei que deveria responder às suas perguntas dessa maneira, mas não quero que as respostas pareçam ter vindo apenas de minhas opiniões. Eu consultei meus irmãos expressamente, e eles aprovaram.

Saudações,
10 Janeiro de 1560.


Mary Beaty and Benjamin W. Farley, Calvin’s Ecclesiastical Advice (Louisville, Westminster/John Knox Press, 1991), pp. 160-161.
Tradução de Ewerton B. Tokashiki

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Theodore Beza recomenda Jacob Arminius

Theodore Beza, o principal teólogo de Genebra, escreveu outra carta de recomendação a favor de Armínio para o Conselho de Amsterdã. Beza escreveu ao Rev. Martin Lydius, ministro da igreja de Amsterdã, as seguintes palavras de recomendação acerca de Armínio:

“Para descrever em poucas palavras, tenho o prazer de notar que, desde o período em que Armínio retornou para nós, da Basileia para Genebra, tanto suas conquistas no aprendizado quanto seu modo de vida foram tão aprovados por nós, que criamos as maiores esperanças a seu respeito, se ele seguir o mesmo caminho que está agora e no qual, pensamos, pelo favor de Deus, ele continuará. Pois o Senhor lhe conferiu, entre outros talentos, uma feliz habilidade de perceber claramente a natureza das coisas e de formar um julgamento correto sobre elas, que, se daqui por diante for submetido ao governo da piedade, do qual ele se mostra mais indubitavelmente estudioso, fará com que sua poderosa genialidade, depois de amadurecida pelos anos e confirmada por seu conhecimento das coisas, produza uma rica e mais abundante colheita. Esses são nossos sentimentos em relação a Armínio, um jovem, na medida em que pudemos fazer um julgamento sobre ele, em nenhum aspecto indigno de sua benevolência e liberalidade.”

W. Robert Godfrey, Saving the Reformation: The Pastoral Theology of the Canons of Dort, Reformation Trust Publishing p. 198.
Traduzido por Alan Kleber Rocha

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Os Artigos de Lausanne por João Calvino

Questões a serem discutidas em Lausanne
na nova província de Berna

em 1 de Outubro de 1537

I
A Sagrada Escritura ensina apenas uma maneira de justificação, que é pela fé em Jesus Cristo, de uma vez por todas oferecida, e não é senão um destruidor de toda a virtude de Cristo, quem faz outra satisfação, oferta ou purificação para a remissão de pecados.

II
Esta Escritura reconhece a Jesus Cristo, que ressuscitou dos mortos e está no céu à direita do Pai, como o único chefe e verdadeiro sacerdote, mediador soberano e verdadeiro defensor da sua Igreja.

III
A Sagrada Escritura chama de Igreja de Deus todos os que creem que são recebidos somente pelo sangue de Jesus Cristo e que, creem com constância e sem vacilar, firmam e apoiam-se na Palavra, que, retirando-se de entre nós em presença corpórea, todavia, a virtude de seu Espírito Santo enche, sustenta, governa e vivifica todas as coisas.

IV
A referida Igreja contém certas coisas que são conhecidas apenas para os olhos de Deus. Possui sempre cerimônias ordenadas por Cristo, através das quais é visto e conhecido, isto é, o Batismo e a Ceia de nosso Senhor, que são chamados sacramentos, pois são símbolos e sinais de coisas secretas, isto é, da graça divina. A referida Igreja não reconhece nenhum ministério, exceto o que prega a Palavra de Deus e administra os sacramentos.

VI
Além disso, esta mesma Igreja não recebe nenhuma outra confissão além daquela que é feita a Deus, nenhuma outra absolvição do que aquela que é dada por Deus para a remissão dos pecados e que, por si só, perdoa e remete seus pecados que, para esse fim, confessam a sua culpa.

VII
Além disso, esta mesma Igreja nega todas as outras formas e meios de servir a Deus, além do que é espiritualmente ordenado pela Palavra de Deus, que consiste no amor de si mesmo e do próximo. Por isso, rejeita inteiramente os inúmeros esforços fúteis de todas as cerimônias que pervertem a religião, como imagens e coisas semelhantes.

VIII
Também reconhece o magistrado civil ordenado por Deus apenas como necessário para preservar a paz e a tranquilidade do Estado. Para que fim, deseja e ordena que todos sejam obedientes a medida em que nada é ordenado contrário a Deus.

IX
Em seguida, afirma que o casamento é instituído por Deus para todas as pessoas como adequado e conveniente a elas, e não infringe a santidade de ninguém.

X
Finalmente, quanto às coisas que são indiferentes, como alimentos, bebidas e a observação dos dias, permite que tudo o que o homem crê que possa usar em todos os momentos de forma livre, a não ser o que a sabedoria e a caridade impeçam.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Carta de Martinho Lutero a Johannes Staupitz [9 Fevereiro de 1521]

Ao reverendo e ótimo Johannes Staupitz, mestre na sagrada teologia, agostiniano ermitão, do seu progênito no Senhor.

Saúde. Admira-me que minhas cartas e meus livretos não tenham chegado ainda a suas mãos como deduzo. Pregando aos demais estou me desqualificando a mim mesmo,[1] que até ao extremo me alieno-me no trato com os irmãos. Pelo que lhe garanto que poderá ter uma ideia do espírito com que, todavia, trato a Palavra de Deus. Nada se fez, ainda, em Worms contra mim, considerando que os papistas andam maquinando desígnios perniciosos com furor invejável. Spalatino escreveu-me dizendo que o evangelho goza ali de boa aceitação, que espera que não me condenem sem terem escutado e convencido.

Em Leipzig, Emser, sem envergonharem-se de modo algum, escrevem contra mim um libelo que é um emaranhado de mentiras, desde o princípio até o fim. Vejo-me necessitado de dar uma resposta a este monstruoso desprezo pela causa do duque Jorge, que é quem encoraja a loucura do autor.

Não me incomoda a notícia de que Leão[2] também se dirigiu contra você, desta sorte poderás erigir para exemplo do mundo a cruz que tanto pregou. Não gostaria que o lobo se contentasse com sua resposta em que lhe concedes mais do que é justo. Ele interpretará como se renegasses a mim e de tudo o que é meu, ao declarar que se submete a seu juízo. Por isso, se Cristo o ama, o obrigará à revogação deste escrito, pois que nessa bula se condena tudo o que ensinou e se compraz. Como nada disto lhe é desconhecido, parece-me que ofende a Cristo, pois aceita como juiz a quem é um furioso inimigo de Cristo, a quem se desencadeia contra a palavra da graça. Terá que afirmar isto e argumentar-lhe contra essa impiedade. Que não é para andar com temores, mas gritar, este tempo em que o nosso Senhor Jesus Cristo se vê condenado, despojado e blasfemado. Na mesma medida em que me exorta à humildade, lhe exorto à soberba. A sua humildade é tão excessiva como excedente é minha arrogância.

Mas a situação está séria. Vemos que Cristo está sofrendo. Se antes foi preciso silenciar, agora quando o próprio boníssimo Salvador que se entregou por nós padece de escárnio por todo o mundo, não lutaremos por ele, não arriscaremos o nosso pescoço? Meu pai, que é muito mais grave o perigo do que muitos pensam. Começa a entrar em vigor a declaração do evangelho: “ao que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu pai, mas me envergonharei de quem se envergonhar de mim.”[3]

Que pensem que sou soberbo, avarento, adúltero, homicida, antipapa e réu de todos os vícios, contanto que não podem me impiamente arguir em calar enquanto o Senhor sofre e diz: “não há escapatória para mim; não há quem cuide de meu espírito; olhei para a minha direita e ninguém me reconhecia”[4] Tenho a confiança de que esta confissão me perdoará de todos os meus pecados. Que por este motivo lancei confiado chifres contra esse ídolo e verdadeiro anticristo de Roma. A palavra de Deus não é palavra de paz, mas palavra de espada.[5] Mas “que direi, imundo eu sou, a Minerva?”[6]

Escrevo-lhe isto em confiança, porque muito temo que se levante como um mediador entre Cristo e o papa que percebe o quão violentamente ele é. Roguemos para que o Senhor Jesus Cristo sem tardar com o sopro de sua boca destrua a este filho da perdição.[7] Se não quiser vir após mim, deixe-me que marche e me enfade. Pela graça de Deus não deixarei em minha tarefa de atirar na face de suas monstruosidades a esse monstro.

É verdade que me enche de tristeza a sua submissão, que me revela a um Staupitz tão diferente daquele pregador da graça e da cruz. Não sofreria se houvesse atuado desta forma antes da promulgação da bula e da ignomínia feita a Cristo.

Hutten e outros escrevem com força a meu favor e estão preparando canções que farão pouca graça a essa Babilônia.[8] O nosso príncipe atua com tanta prudência e fidelidade como constância. Edito essas Asserções, por sua ordem, tanto em latim como em alemão.[9]

Felipe[10] lhe saúda e roga para que cresça o seu ânimo. Dê saudações, por favor, ao médico Ludovico[11] que me escreveu com tanta erudição. Não tive tempo de responder-lhe, por isso tenho três prensas trabalhando só para mim. Adeus no Senhor, e rogue por mim.

Wittenberg.
Dia de santa Apolônia, 1521. O seu filho Martinus Lutherus.


NOTAS:

[1] 1Co 9.27.
[2] Leão X, por meio do arcebispo de Salzburg, Mateus Lang, urgiu a Staupitz que declarasse como heréticas as doutrinas de seu súdito, Frei Martinho Lutero. Veja a reação de Lutero ao informar-se de que Staupitz se submetia a sua causa da decisão do pontífice.
[3] Mt 10.32; Lv 9.26.
[4] Sl 142.5.
[5] Mt 10.34.
[6] Dito recolhido de Erasmo, Adagia I.1.40.
[7] 2Ts 2.3 e 8.
[8] É interessante para notar o jogo de opinião pública nesta fase da Reforma.
[9] Assertio omnium articulorum M. Lutheri per bullam Leonis X novissimam damnatorum. WA 7, pp. 94-151.
[10] Felipe Melanchthon.
[11] Ele chama equivocadamente Ludovico, o médico do arcebispo de Salzburg, cujo verdadeiro nome era Leonardo Schmaus.

Algumas críticas à Loci Communi: A carta de Martinho Lutero para Felipe Melanchthon

  [1 de agosto de 1521] [1] Dia do apóstolo são Pedro, 1521. [2]   Você não terminou de dar razões suficientes para medir com a mesma no...